Littérature et Idée Mythopoétique Poétique du récit Espaces littéraires transculturels Perspectives critiques en littérature et poétique comparées Recherches sur la littérature russe Musique et littérature Observatoire des écritures contemporaines
Recherche par auteur étudié  :
Recherche par thème  :
Recherche dans tout le site :
COLLOQUES


LE CORPS ET SES TRADUCTIONS / O CORPO E SUAS TRADUÇÕES
Apresentação

Camille Dumoulié & Michel Riaudel


1

A imagem do corpo na literatura e nas artes já foi estudada com alguma freqüência, mas mais raramente a maneira como ele se constitui, como ele toma posse do universo simbólico. Como o corpo entra na literatura? Como ele penetra um texto e dá vida à escrita? Certamente não é com a densidade de um objeto concreto sobre o que, segundo Mallarmé, “as páginas se fechariam mal” (Crise de verso). Aliás, por mais que se queira escrever com o sangue, os nervos ou as tripas, a página será sempre preenchida, graças ao bom Deus, apenas pelo traço de tinta da caneta ou da impressora, preto no branco. E apesar da tentativa das vanguardas de introduzir o corpo no texto, ele permanece tão esquivo quanto a Idéia a qual, segundo os primeiros românticos, a literatura devia dar corpo.
As artes plásticas produzem corpos, pintam ou esculpem suas formas. Mas quanto mais a escrita se esforça para evidenciar a palpitação de um corpo, mais ela provoca o seu “quase desaparecimento vibratório conforme o jogo da palavra”. Ora, assim fazendo, ela manifesta a sua intolerável presença. Ela proclama, contra todas as artes plásticas, que o corpo não é um objeto de representação. É impossível representar o que escapa da ordem do real. O corpo é ao mesmo tempo um elemento da natureza e um produto da cultura. Um fato biológico e um fato lingüístico. Um fenômeno hipercoletivo, já que modelamos nosso corpo segundo a imagem que a sociedade nos impõe, e um dado infraindividual, pois ao mesmo tempo ele nos impõe a semiótica de seus afetos que mais comanda nosso eu do que este o corpo. No limite entre a natureza e a cultura, ultrapassando uma e outra, declinando à ordem de uma e de outra, ele se faz borda, limiar, junta.
A Palavra deriva deste paradoxo ontológico que é nosso corpo, naquilo que ela supõe a presença e a abstração. É tudo o que está em jogo em Fedro e a defesa do logos contra o texto: a elocução, a eloqüência evitavam, segundo Platão, dissociar, desacoplar a linguagem do corpo, que a profereria como fiador de sua autenticidade. Quanto à letra, ela condenava o sentido à errância e o expunha aos embustes. Mas em meio a tudo isso o que acontece com os “bem-falantes”, contra os quais, aliás, o texto platônico se aferrou? E se ao contrário, somente a escrita pudesse dar uma justa explicação dessa tensão entre verbo e encarnação, na medida em que ela é inapta a representar o corpo e a objetivá-lo? A escrita mantém com ele esta relação essencial: é uma atividade física de inscrição literal — sob a forma de letras, corpos, traços, manchas — da palavra, do verbo ou do significante, conforme o termo que cada época privilegia para definir o fato de que o homem fala e que, falando, existe radicalmente fora da natureza. O lugar onde vive essa radical existência é seu corpo, atributo primeiro da natureza. E tal existência radical a escrita comprova, de forma incansável, como se obstinadamente quisesse levar a palavra a pôr à prova sua inscrição na materialidade do corpo.
O corpo é, portanto, um corpo condutor de sentido. Mas como une dois domínios heterogêneos, carne/língua, natureza/cultura, ele é primeira e originariamente um corpo tradutor. Como afirmavam Spinoza e Nietzsche, o corpo se constitui por tradução e interpretação de afetos; de maneira que a escrita literária é um resultado dessa atividade primeira do corpo, que assim consegue tornar-se sensível e concreto no seio de uma prática puramente linguageira. Compreende-se então porque Proust e Beckett puderam afirmar que o escritor é antes de mais nada um tradutor. Certo, questionar a respeito do corpo e de suas traduções pode ser entendido, primeiro, no sentido do vocabulário do corpo, de sua tradução literária, de sua transferência de uma língua a uma outra, mas, de maneira mais essencial, é um convite para interrogar as conseqüências da idéia de que a atividade primeira do corpo é interpretar, traduzir indefinidamente.


I. O título do primeiro capítulo, “O corpo palimpsesto”, representa essa idéia de que o corpo se constitui através de uma série de traduções de “si” e dos “outros”, assim como dos outros corpos e dos seres da natureza. Portanto, não existe verdadeiramente corpo próprio, mas estilos de incorporação que são também maneiras de interpretar o ser vivo. Desde logo, nenhuma obra será o espelho do “corpo próprio” do autor, pois a atividade criadora é projeção, relançamento infinito do gesto interpretativo pelo escritor, pelo leitor e, depois, evidentemente, pelo tradutor. A matéria da arte e da literatura é portanto o corpo em evolução, evolução que não cessa de se incorporar. ”Corporizar“ significa traduzir. É a idéia que está no centro do pensamento nietzscheano do corpo.
No mundo perspectivista da vontade de poder, o corpo é expressão direta do combate entre “quanta dinâmicos”. A existência se define então como um processo incessante de incorporação, que supõe a passagem de uma configuração onde certos quanta impuseram um tipo de organização, a uma outra configuração onde outros tomarão o poder. Cada um desses arranjos de forças e de afetos pode ser considerado como uma “interpretação” da vontade de poder, como um tipo, um estilo de corporeidade cujo “eu” ou “sujeito” são mais os efeitos do que a origem interpretativa. Visto que viver consiste em incorporar configurações anteriores para integrá-las em um novo processo de interpretação, viver é essencialmente traduzir.
O que afinal denominamos “o” corpo, além de todos os nossos corpos particulares? Excetuando uma espécie de idéia transcendental, essa denominação só pode designar esse movimento de tradução infinito do ser vivo que se efetua, se atualiza nos corpos particulares. De maneira que cada estilo de interpretação delimita uma zona de consciência que nos permite sentir que possuímos um corpo. Mas ao mesmo tempo todos os corpos são tomados por este grande movimento de interpretação inconsciente que constitui o trabalho pisíquico e fisiológico do Corpo. De um lado, trabalhamos na constituição de um corpo orgânico, cultural e funcional; de outro, somos trespassados pela expropriação do Corpo, que é como o tecido no qual se perfilam todos os corpos. Um e duplo ao mesmo tempo, o ser íntimo do corpo pode se definir, à maneira de Merleau-Ponty, como um “quiasmo”. Esta noção Camille Dumoulié coloca em paralelo com a experiência poética de Artaud, que demonstra que, dessa deiscência, emerge o pensamento em estado nascente. Ele sugere então que a particularidade de toda grande tradução, de toda grande voz narrativa, assim como de toda incorporação de um grande estilo, é deixar perceber, por trás das formas e das obras, a força enigmática de um timbre intraduzível.
O corpo palimpsesto, intensamente vivo e pensante a partir de um “quiasmo” que é origem de conexões e interpretações infinitas, eis o que o bio-poder contemporâneo trata de destruir. Mas ele o faz trazendo o corpo até uma espécie de ponto zero, que Peter Pál Pelbart define como “a vida a nu”. Da vida nua a qual são reduzidos os sobreviventes dos campos de concentração, ao “simples corpo” ou à “vida besta”, que são o produto do bio-poder, ele faz a genealogia do corpo fascista. A “vida besta é esse rebaixamento global da existência, essa depreciação da vida, sua redução à vida nua, à sobrevida, estágio último do niilismo contemporâneo. ”. Perder a capacidade de o corpo ser afetado, em nome de um corpo “blindado” e da “gorda saúde”, é o mesmo que eliminar a capacidade deste corpo de interpretar e de traduzir, em outras palavras, de pensar. Ao longo de todo o seu texto, Peter Pál Pelbart faz um paralelo entre essas experiências próximas e antagônicas que são o corpo sem órgãos — potência vital de conexão e metamorfose — e o corpo pós-orgânico que anexa o corpo ao axioma capitalista. “Como diferenciar a decomposição e a desfiguração do corpo necessárias para que as forças que o atravessam inventem novas conexões e liberem novas potências […], da decomposição e a desfiguração que a produção do sobrevivente, ou a manipulação biotecnológica suscita e estimula?” Artaud, Primo Levi, Beckett, Deleuze, Foucault, Agamben balizam seu percurso para tentar responder, in fine, esta questão paradoxal: como, a partir da vida nua dos campos de concentração, ou daquela a que o bio-poder nos reduz, como, após o esgotamento de nossos corpos e a extenuação de nossas vidas, como se pode encontrar forças para “sobre-viver” e derrubar o niilismo contemporâneo? Por isso Artaud escrevia, em Suppôts et Suppliciations, “O fundo das coisas é a dor, mas estar na dor não é sofrer e sim sobre-viver, e também quero dizer sobreviver perpetuamente, mas sobretudo viver a uma taxa acima, na estiagem do extremo superior” (“Carta a André Breton, de 2 de junho de 1946”).


II. Pôr o corpo a nu para inventar um corpo novo. Segundo Artaud, era esta a função primordial do Teatro da Crueldade. Tal operação lhe parecia o único meio para lutar contra o espírito da massa, “o azar bestial da animalidade humana” que quis os campos de concentração, e que, hoje, deseja a produção dessa vida nua. Ao contrário das idéias feitas, de fato o teatro não é o lugar nem da apresentação nem da representação do corpo dos atores. De Shakespeare a Beckett, o teatro inventa o corpo, ou seja, ele o traduz através de metáforas e metamorfoses infinitas. François Laroque o demonstra a propósito do teatro de Shakespeare e a partir desta réplica emblemática, dirigida a Bottom: “Thou art translated!”. A incrível proliferação de metáforas, dísticos e metamorfoses do teatro shakespereano encontra sua origem no caráter inominável e inapresentável do corpo, em geral, e do corpo da mulher, em particular, no palco do teatro inglês. Assim, a censura do corpo dá origem a uma proliferação de traduções do corpo e de suas partes que constitui mesmo o cerne da atividade poética e dramática de Shakespeare. O corpo passa entre os sexos, entre as espécies, entre os reinos naturais. De maneira que pôr o corpo em cena é o mesmo que seguir as linhas de fuga trágicas ou grotescas, sublimes ou carnavalescas de seus devenires — mulher, criança, animal…
De seu devenir-animal, Moby Dick apresenta um exemplo considerável. E Yves-Michel Ergal parte desse romance de Melville para mostrar que a obsessão de um inominável do corpo perpassa toda a sua obra e orienta os devenires trágicos e as derivas grotescas dos corpos postos em cena. Este “corpo sexual literário” que quanto mais inominável, mais faz escrever e mais exige traduções, é, selon Y.-M. Ergal, o corpo homossexual que não pode ser nomeado, salvo em um último gaguejo da escrita. Do corpo inominável de Achab-Moby Dick, que se traduz através dos furores e inflexões de uma tragédia shakespereana, chega-se, com personagens como Bartleby ou Billy Bud, a uma escrita do Inominável que prefigura os textos de Kafka ou de Beckett.
Traduzir o inominável do corpo para fazê-lo existir em um desvio entre as línguas que lhe permitiria escapar à petrificação do cadáver. De fato parece ter sido isto que orientou o desejo de escrever de Beckett. Aliás, o princípio de toda arte poética, para Beckett, vem desta primazia da tradução: “A tarefa de um escritor — não de um artista, de um escritor — é a de tradutor”. Trata-se então, como escreve Didier Anzieu, de “recuperar o corpo na palavra”, “inscrever no texto as vivências corporais”, graças a constituição de um idioleto? A radicalidade da obra de Beckett questiona o sentido primordial dessas fórmulas, já que falta justo a vivência corporal, propriamente falando. O sentimento da impropriedade originária do corpo é tal, para Beckett, que se trata menos de fazer falar o corpo do que de “exorcisar a presença do corpo falando dele numa língua estrangeira”, na expressão de Chiara Montini. Sua análise evidencia particularmente que a passagem do corpo pelo crivo da língua estrangeira (o francês) e depois a auto-tradução em inglês são, tanto um quanto outro, procedimentos para colocar à distância a pretensa vivência corporal, originariamente enviscada na fusão com o corpo materno cuja língua materna é o duplo simbólico. Mas mesmo que o projeto de Beckett seja de “abolir” o corpo, ele é, sobretudo, de salvar a energia humoral e humorística de um corpo em trânsito, na fronteira do inominável, que encontra sempre na outra língua um espaço de sobrevida. Logo, a tradução é mesmo uma atividade genésica e originária produzindo de um só gesto o corpo da obra e o corpo em sobrevida do escritor.


III. A literatura é uma atividade de resistência. Ela resiste duplamente: de um lado, à invasão devastadora do corpo inominável, e de outro, à redução do corpo à vida nua e simples da “vida besta”. Nos dois casos ela resiste através de uma atividade de escrita que é contínua à atividade produtora do corpo vivo: multiplicar as interpretações e as traduções. O corpo é uma potência poética operando na matéria viva como o corpo da letra, através da escrita, opera na língua. Poder-se-ia dizer que o corpo e a letra pensam, ou então que são os receptáculos originários (à maneira da Chora platônica) do pensamento. Receptáculos, naquilo que eles perpetuam e repercutem “um processo pelo qual a matéria tomou lentamente consciência dela mesma”, segundo a fórmula de Jonathan Pollock. Através de uma visão que engloba o pensamento chinês, o materialismo epicuriano, a poesia anglo-americana e a teoria lacaniana da letra, ele desenvolve a idéia de que as “formas do ser vivo participam de um fenômeno de emergência: elas resultam dos movimentos que se comunicam os grãos de matéria, sem que estes sejam eles próprios dotados de vida ou de sensibilidade”. Esta concepção materialista da vida e do pensamento leva a reconhecer que o Verbo não se fez carne, mas que ele é a sublimação de um processo material de interpretação e de tradução do real que se assemelha a um trabalho de escrita. Porque o corpo e a letra fazem fronteira entre duas ordens do real heterogêneas, eles são o lugar material onde o pensamento se forma e se ancora.
Amarrando seu comentário sobre Walt Whitman — de quem ele é também o tradutor — à célebre expressão “Eu canto o corpo elétrico”, Jacques Darras sugere ao mesmo tempo a filiação épica de Folhas de relva e a novidade, a modernidade dessa palavra: de um lado o continuum, de outro a ruptura. Como o título do volume indica, sua matéria é constituída do vasto tecido vegetal da criação, que remonta tanto a Virgílio quanto a Lucrécio: o universo não é senão um todo nessa concepção panteísta, atomista, vitalista, genésica do mundo. O cristianismo quacre de Whitman reinventa livremente uma metafísica sem um verdadeiro deus nem transcendência, ele se emancipa de todo dogma ou tabu num impulso fraternal que reafirma a comunidade dos homens na comunhão de uma palavra, eucaristia profana do verbo e transubstanciação dos corpos. É portanto contra a carniça (Baudelaire) e a alteridade (Rimbaud) que compreenderemos a singularidade americana deste corpo higienista, atlético, deste eu que, longe de ser um outro, inclui-os todos. Mas se a matéria se curva no corpo, e o corpo no verseto whitmaniano, também é verdade que eles se precipitam e se movem sob o efeito elétrico da atração, do encanto e do desejo. E nisto a linguagem é também acidente, clinâmen, num jogo de forças paradoxais onde acabam, talvez, por se encontrar o corpo de Artaud concebido como “pilha elétrica”, animado de “deslocamentos voltaicos”, e o canteiro aberto da poesia de Whitman, negociando a existência exaltada e sua cota de sofrimentos, a morte e a regeneração, as múltiplas configurações cinéticas de si mesmo.
Voltando à dicotomia filosófica entre corpo e linguagem, Michel Riaudel mostra que a poesia se instaura no entremeio, no espaço vago que, longe de ser vazio, é o espaço da extrema complexidade dos signos. A vida está nas dobras, declarava Michaux, uma das referências de Ana Cristina Cesar. E essa mulher poeta que, como ele, sonhava em “sair da pauta” da escrita por meio do desenho, encontra na complicação de Tintoretto o emblema de sua arte poética. A irrupção do quadro no texto desloca o universo semiótico da poesia para um outro registro de signos e, através deste transporte, faz emergir na discordância dos signos o que a mimesis normalmente exclui: justamente as pulsões, o erotismo, os afetos. A poesia torna-se assim o campo de experimentação do que está fora da linguagem que, conforme a complexidade das dobras, pode se desvirar como uma “luva de pelica”. Em último caso, sobre o debrum sempre redobrado e desdobrado do sentido, assim como sobre o debrum da letra, o trabalho poético do significante torna-se o lugar de um “corpo-a-corpo” de onde o leitor arranca um gozo.


IV. De uma língua a outra, de uma palavra estrangeira a outra palavra, o que constitui a continuidade carnal, o rastro vivo do corpo na língua é o trabalho da letra própria à literatura, que a tradução literária, à sua maneira, perpetua. Salvar a vida material do espírito, na disseminação de sua diferença, contra a hegemonia de um Verbo transcendente distribuidor de sentido, no fundo é isto o que está em jogo na poética de Emily Dickinson, que busca este momento epifânico onde “uma Palavra faz Carne”.
Freqüentemente vista como oposta à eufórica fusão whitmaniana, a poeta de Amherst, porém, não escreve contra a vertente emersoniana da nova poesia estado-unidense, mas com ela. De fato ela rearticula à sua maneira, como nos diz Michael A. Soubbotnik, a passagem do transcendentalismo ao “materialismo” de um Mark Twain ou de um Henry James. Sem dúvida é também sua freqüentação das predicações de Jonathan Edwards, no século precedente, que lhe permite continuar fiel à experiência em um mundo que se torna opaco, já que para este puritano tal experiência tem o poder de se decantar na escrita. Assim, o verso de Emily Dickinson afina as provações do corpo, enquanto que o corpo é intermediário entre a alma da persona poética e a transcendência. O corpo se faz linguagem, a linguagem se faz orgânica, em uma emulsão levada sem dúvida muito longe pelo cristianismo, como é sugerido no Seminario XX de Jacques Lacan e em suas considerações sobre o barroco. Irredutível a um simples dualismo do espírito e do corpo, o Novo Testamento reincarna de fato o Verbo. Duas séries paralelas e paradoxais coabitam então: o êxtase prazeroso da carne e o corpo abstrato da imortalidade. Quanto ao relato perverso, este tem outros recursos para traçar o corpo; ou melhor, ele não tem outro recurso senão traçar o corpo. O caráter ardente das recordações sensuais da infância, infantis, obriga finalmente a deixar o erotismo em suspense na escrita: o tempo emperra, a escrita gagueja. “Lolita, Lolita, Lolita, Lolita. Tipógrafo, repita esse nome até o fim da página”. Lendo de modo concomitante as memórias de Vladimir Nabokov, Speak, Memory, e seu romance mais famoso, Eliane Robert Moraes expõe como a ficcionalização opera, enfim, como uma maneira de fixar fora do tempo os “pigmentos duradouros” de uma experiência humana, assim como os desenhos de auroques nas cavernas pré-históricas. É nisso que a “confissão” de Humbert Humbert condenaria sua antiga aventura a permanecer emparedada no passado: não suscetível de atualização, ela obriga o narrador a inventar uma semiótica que, a exemplo das marcas deixadas por uma enchente em uma parede que mais tarde se resseca, deixa nas sedimentações do texto os sinais geológicos de uma “subida das águas” ao mesmo tempo inédita e inconfessável, pela qual o ser se sentiu um dia submerso, apanhado em delito. Se, como escreve Nabokov, “o sexo é apenas a ancila da arte”, a literatura extrai daí a sua razão de ser, fazendo-se lugar de conversão, de tradução, da experiência erótica em expressão estética. Onde o corpo troca seu “eu-pele”, envelope da alma, por uma língua reinventada, envelope do mundo fenomenal sem o qual ele não se deixa apreender.
Mas então é preciso resignar-se a não ter um tempo contínuo, à impossibilidade de um retorno às origens? É preciso avalizar a letra como corte irremediável com um tempo perdido, acabado, entre uma interioridade e o espaço exterior? Ou, ao contrário, pode-se encará-la como laço, costura entre “as palavras e as coisas”? O caráter originário da tradução foi relevado por Jacques Derrida, cujo conceito de “arqui-escrita” infere que todo discurso, oral ou escrito, é já a tradução de um arqui-texto que não contém nenhum sentido definitivo. Se não há nem sentido primeiro nem sentido próprio, qual será o critério da “boa” tradução, aquela que Derrida chama de “relevante”? Pois esta última deve ficar “tão perto quanto possível da equivalência de “uma palavra por uma palavra” e portanto respeitar a quantidade verbal como quantidade de palavras das quais cada uma é um corpo indivisível, a unidade infragmentável de uma forma e de um corpo indivisível, a unidade infragmentável de uma forma sonora incorporando ou significando a unidade infragmentável de um sentido ou de um conceito”. Tal é o princípio ao qual se refere Inês Oseki-Dépré no artigo onde comenta seu próprio trabalho de tradução dos Escritos de Lacan em português para o Brasil. E compreende-se o quanto este princípio é “relevante” no que concerne ao discurso lacaniano que se funda, em sua teoria e em sua prática, na materialidade do significante que se condensa em verdadeiros “corpos indivisíveis”. Insensato em sua própria materialidade, o significante não cessa de produzir efeitos de senso que se traduzem por diversas formas de incorporações — os sintomas —, mas também que dão tom a um estilo de vida que é para cada um de nós um estilo de corpo. Assim, o trabalho do tradutor junta-se ao do psicanalista: eles têm a tarefa de “meio-dizer” uma verdade que, assim como o sujeito da enunciação, é inteiramente identificável ao desenvolvimento da cadeia significante. Um tal sujeito evanescente só se materializa por vezes em um arranjo significante que faz verdadeiramente um corpo.
Uma vez que a verdade, como o corpo, só pode ser meio-dita, obrigatoriamente é preciso traduzir. E quais são as metades desse dizer? Elas correspondem à divisão genésica do corpo. Ser da natureza, de um lado, ser significante, de outro. E entre os dois, traduz-se. Mas porque o primeiro é inominável, o segundo se entrega de maneira demasiado fácil às traduções gregárias. O cinema e a mídia nos mostram, geralmente, a vitória do segundo, ou pelo menos de sua caricatura fantasmática. O primeiro sendo devoto às eviscerações, carnificinas, e outros massacres à serra. As artes plásticas não sabem mais muito bem qual deles é preciso mostrar, apesar do caminho transversal que em um determinado momento a arte negra abriu aos surrealistas. E a pintura de Francis Bacon se distingue assim tão claramente porque põe em cena corpos que se portam furiosamente na fronteira onde as duas metades se chocam e se misturam sob o risco de uma liquefação generalizada do ser. A filosofia, do “corpo próprio” da fenomenologia ao “corpo sem órgãos” de Deleuze e Guattari, repete o eterno dualismo que funda sua experiência e seus conceitos. Somente a literatura, porque tão improvável quanto o corpo, traço de nada, palavra encarnada no cadáver da letra, letra que dá corpo a uma palavra muda, somente ela nos evidencia o trabalho do corpo à obra. Entre o inominável do real e a miragem do significante, o corpo se interpreta, se traduz e, em se fazendo, desdobra a carne do mundo. E o mundo toma corpo quando o livro se encarna.
1 Traduzido por Amílcar Bettega.


___________________________________________________

- Auteur : Camille Dumoulié & Michel Riaudel
- Titre : Apresentação
- Date de publication : 10-09-2011
- Publication : Revue Silène. Centre de recherches en littérature et poétique comparées de Paris Ouest-Nanterre-La Défense
- Adresse originale (URL) : http://www.revue-silene.comf/index.php?sp=comm&comm_id=57
- ISSN 2105-2816