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COLLOQUES


LE CORPS ET SES TRADUCTIONS / O CORPO E SUAS TRADUÇÕES
A vida desnudada

Peter Pál Pelbart - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.


Eu gostaria de começar pelo mais extremo – o muçulmano. Retomo brevemente a descrição feita por Giorgio Agamben a respeito daqueles que, no campo de concentração, recebiam essa designação terminal2. O muçulmano era o cadáver ambulante, uma reunião de funções físicas nos seus últimos sobressaltos3. Era o morto-vivo, o homem-múmia, o homem-concha. Encurvado sobre si mesmo, esse ser bestificado e sem vontade tinha o olhar opaco, a expressão indiferente, a pele cinza pálida, fina e dura como papel, começando a descascar, a respiração lenta, a fala muito baixa, feita a um grande custo… O muçulmano era o detido que havia desistido, indiferente a tudo que o rodeava, exausto demais para compreender aquilo que o esperava em breve, a morte. Essa vida não humana já estava excessivamente esvaziada para que pudesse sequer sofrer4. Por que muçulmano, já que se tratava sobretudo de judeus? Porque entregava sua vida ao destino, conforme a imagem simplória e certamente equivocada do fatalismo islâmico: o muslim é aquele que se submete sem reserva à vontade divina. Em todo caso, quando a vida é reduzida ao contorno de uma mera silhueta, como diziam os nazistas ao referir-se aos prisioneiros, chamando-os de Figuren, figuras, manequins, aparece a perversão de um poder que não elimina o corpo, mas o mantém numa zona intermediária entre a vida e a morte, entre o humano e o inumano: o sobrevivente. O biopoder contemporâneo, conclui Agamben, reduz a vida à sobrevida biológica, produz sobreviventes. De Guantánamo à Africa, isso se confirma a cada dia.


Ora, quando cunhou o termo de biopoder, Foucault referia-se a um regime que tem por prioridade cuidar da população, da espécie, dos processos biológicos. Gerir a vida, mais do que exigir a morte, otimizar as forças vitais que ele submete. O poder investe a vida, não mais a morte, como no regime dito de soberania. Agamben, porém, subverte a equação foucaultiana para postular que o biopoder contemporâneo já não se incumbe de fazer viver, muito menos de fazer morrer, mas de fazer sobreviver. Ele cria sobreviventes. E produz a sobrevida. No contínuo biológico, ele busca até isolar um último substrato de sobrevida. Como diz Agamben: “Pois não é mais a vida, não é mais a morte, é a produção de uma sobrevida modulável e virtualmente infinita que constitui a prestação decisiva do biopoder de nosso tempo. Trata-se, no homem, de separar a cada vez a vida orgânica da vida animal, o não-humano do humano, o muçulmano da testemunha, a vida vegetativa, prolongada pelas técnicas de reanimação, da vida consciente, até um ponto limite que, como as fronteiras geopolíticas, permanece essencialmente móvel, recua segundo o progresso das tecnologias científicas ou políticas. A ambição suprema do biopoder é realizar no corpo humano a separação absoluta do vivente e do falante, de zoè e biós, do não-homem e do homem: a sobrevida5”. Zoè para os gregos, como se sabe, designa o fato da vida, enquanto Bios significa a vida qualificada. Agamben quer dizer que hoje se reduziu Bios a Zoé, as maneiras de viver ao fato da vida.

Fiquemos pois, por ora, nesse postulado inusitado que Agamben encontra no biopoder contemporâneo: fazer sobreviver, produzir um estado de sobrevida biológica, reduzir o homem a essa dimensão residual, não humana, vida vegetativa, que o muçulmano por um lado, o neo-morto das salas de terapia intensiva em nossos dias, por outro, encarnam. A sobrevida é a vida humana reduzida a seu mínimo biológico, à sua nudez última, à vida sem forma, ao mero fato da vida, à vida nua, àquilo que os gregos designavam por zoè, em contraposição à bios, vida qualificada, forma de vida. Mas engana-se quem vê vida nua, tal como Agamben o nota, apenas na figura extrema do muçulmano, sem perceber o mais assustador: que de certa maneira somos todos muçulmanos. Até Bruno Bettelheim, sobrevivente de Dachau, quando descreve o comandante do campo, qualifica-o como uma espécie de muçulmano, “bem alimentado e bem vestido”. Ou seja, o carrasco é ele também, igualmente, um cadáver vivo, habitando essa zona intermediária entre o humano e o inumano, máquina biológica desprovida de sensibilidade e excitabilidade nervosa. A condição de sobrevivente, de muçulmano, é um efeito generalizado do biopoder contemporâneo, ele não se restringe aos regimes totalitários, e inclui plenamente a democracia ocidental, a sociedade de consumo, o hedonismo de massa, a medicalização generalizada da existência, em suma, a abordagem biológica da vida numa escala ampliada.

O corpo

Tomemos a título de exemplo o superinvestimento do corpo que caracteriza nossa atualidade. Desde algumas décadas, o foco do sujeito deslocou-se da intimidade psíquica para o próprio corpo. Hoje, o eu é o corpo. A subjetividade foi reduzida ao corpo, a sua aparência, a sua imagem, a sua performance, a sua saúde, a sua longevidade. O predomínio da dimensão corporal na constituição identitária permite falar, como o sugere Francisco Ortega, numa bioidentidade. É verdade que já não estamos diante de um corpo docilizado pelas instituições disciplinares, como há cem anos atrás, corpo estriado pela máquina panóptica, o corpo da fábrica, o corpo do exército, o corpo da escola. Agora cada um se submete voluntariamente a uma ascese, seguindo um preceito científico e estético. É o que o autor chama de bioascese. Por um lado, trata-se de adequar o corpo às normas científicas da saúde, longevidade, equilíbrio, por outro, trata-se de adequar o corpo às normas da cultura do espetáculo, conforme o modelo das celebridades. A obsessão pela perfectibilidade física, com as infinitas possibilidades de transformação anunciadas pelas próteses genéticas, químicas, eletrônicas ou mecânicas6, como o lembra Jurandir Freire Costa, essa compulsão do eu para causar o desejo do outro por si, mediante a idealização da imagem corporal, mesmo às custas do bem-estar, com as mutilações que o comprometem, substituem finalmente a satisfação erótica que prometem pela mortificação auto-imposta. O fato é que abraçamos voluntariamente a tirania da corporeidade perfeita, em nome de um gozo sensorial cuja imediaticidade torna ainda mais surpreendente o seu custo em sofrimento. A bioascese é um cuidado de si, mas à diferença dos antigos, cujo cuidado de si visava a bela vida, e que Foucault chamou de estética da existência, o nosso cuidado visa o próprio corpo, sua longevidade, saúde, beleza, boa forma, felicidade científica e estética, ou o que Deleuze chamaria a gorda saúde dominante. Não hesitamos em chamá-lo, mesmo nas condições moduláveis da coerção contemporânea, de um corpo fascista – diante do modelo inalcançavel, boa parcela da população é jogada numa condição de inferioridade sub-humana. Que ademais, o corpo tenha se tornado também um pacote de informações, um reservatório genético, um dividual estatístico, com o qual somos lançados ao domínio da biossociabilidade ("faço parte do grupo dos hipertensos, dos soropositivos, etc…), isto só vem fortalecer os riscos da eugenia. Estamos às voltas, em todo caso, com o registro da vida biologizada…7 Reduzidos ao mero corpo, do corpo excitável ao corpo manipulável, do corpo espetáculo ao corpo automodulável, é o domínio da vida nua.. Continuamos no domínio da sobrevida, da produção maciça de "sobreviventes" no sentido amplo do termo.

Sobrevivencialismo

Permitam-me alargar a noção de sobrevivente. Na sua análise do 11 de setembro, Slavoj Zizek contestou o adjetivo de covardes imputado aos terroristas que perpetraram o atentado. Afinal, eles não têm medo da morte, contrariamente aos ocidentais, que não só prezam a vida, conforme se alega, mas querem preservá-la a todo custo, prolongá-la ao máximo. Somos escravos da sobrevivência, até num sentido hegeliano. Essa cultura visa sobretudo isso: a sobrevivência, pouco importa a que custo. Sobrevivencialismo. Somos os últimos homens de Nietzsche, que não querem perecer, que prolongam sua agonia, "imersos na estupidez dos prazeres diários" – é o Homo Otarius. A pergunta de Zizek é a de São Paulo: “Quem está realmente vivo hoje? … E se somente estivermos realmente vivos se nos comprometermos com uma intensidade excessiva que nos coloca além da "vida nua"? E se, ao nos concentrarmos na simples sobrevivência, mesmo quando é qualificada como "uma boa vida", o que realmente perdemos na vida for a própria vida? … E se o terrorista suicida palestino a ponto de explodir a si mesmo e aos outros estiver, num sentido enfático, "mais vivo"…?8” “Não vale mais um histérico verdadeiramente vivo no questionamento permanente da própria existência que um obsessivo que evita acima de tudo que algo aconteça, que escolhe a morte em vida?” Não se trata, obviamente, de nenhuma conclamação ao terrorismo, mas de uma crítica cáustica ao que o filósofo esloveno chama de postura sobrevivencialista “pós-metafísica” dos Últimos Homens, e o espetáculo anêmico da vida se arrastando como uma sombra de si mesma, nesse contexto biopolítico em que se almeja uma existência asséptica, indolor, prolongada ao máximo, onde até os prazeres são controlados e artificializados: café sem cafeína, cerveja sem álcool, sexo sem sexo, guerra sem baixas, política sem política – a realidade virtualizada. Para ele, morte e vida designam não fatos objetivos, mas posições existenciais subjetivas, e nesse sentido, ele brinca com a idéia provocativa de que haveria mais vida do lado daqueles que de maneira frontal, numa explosão de gozo, reintroduziram a dimensão de absoluta negatividade em nossa vida diária com o 11 de setembro, às custas do próprio corpo, do que nos Últimos Homens, todos nós, que arrastam sua sombra de vida como mortos-vivos, zumbis pós-modernos, preservando o anseio da corporeidade perfeita. O autor chama a atenção para a paisagem de desolação contra a qual vem inscrever-se um tal ato dito terrorista, e sobretudo para o desafio de se repensar hoje o próprio estatuto do ato, do acontecimento, em suma, da gestualidade política, num momento em que a vitalidade parece ter migrado para o lado daqueles que, numa volúpia de morte, souberam desafiar nosso sobrevivencialismo exsangue. Seja como for, poderíamos dizer que na pós-política espetacularizada, e com o respectivo seqüestro da vitalidade social, estamos todos reduzidos ao sobrevivencialismo biológico, à mercê da gestão biopolítica, cultuando formas de vida de baixa intensidade, submetidos à morna hipnose, mesmo quando a anestesia sensorial é travestida de hiperexcitação. É a existência de ciberzumbis, pastando mansamente entre serviços e mercadorias, e como dizia Gilles Châtelet, Viver e pensar como porcos. Vida besta é esse rebaixamento global da existência, essa depreciação da vida, sua redução à vida nua, à sobrevida, estágio último do niilismo contemporâneo.

À vida sem forma do homem comum, nas condições do niilismo, a revista Tiqqun deu o nome de Bloom9. Inspirado no personagem de Joyce, Bloom seria um tipo humano recentemente aparecido no planeta, e que designa essas existências brancas, presenças indiferentes, sem espessura, o homem ordinário, anônimo, talvez agitado quando tem a ilusão de que com isso pode encobrir o tédio, a solidão, a separação, a incompletude, a contingência – o nada. Bloom designa essa tonalidade afetiva que caracteriza nossa época de decomposição niilista, o momento em que vem à tona, porque se realiza em estado puro, o fato metafísico de nossa estranheza e inoperância, para além ou aquém de todos os problemas sociais de miséria, precariedade, desemprego etc. Bloom é a figura que representa a morte do sujeito e de seu mundo, onde tudo flutua na indiferença sem qualidades, em que ninguém mais se reconhece na trivialidade do mundo de mercadorias infinitamente intercambiáveis e substituíveis. Pouco importam os conteúdos de vida que se alternam e que cada um visita em seu turismo existencial, o Bloom é já incapaz de alegria assim como de sofrimento, analfabeto das emoções de que recolhe ecos difratados.

Quando a vida é reduzida à vida besta em escala planetária, quando o niilismo se dá a ver de maneira tão gritante em nossa própria lassidão, nesse estado hipnótico consumista do Bloom ou do Homo Otarius, cabe perguntar o que poderia ainda sacudir-nos de tal estado de letargia, e se a catástrofe não estaria aí instalada cotidianamente ("o mais sinistro dos hóspedes"), ao invés de ser ela apenas a irrupção súbita de um ato espetacular.

O corpo que não agüenta mais

O que poderia ainda sacudir-nos de tal estado de letargia, lassidão, esgotamento? Há uma belíssima definição beckettiana sobre o corpo, dada por David Lapoujade. “Somos como personagens de Beckett, para os quais já é difícil andar de bicicleta, depois, difícil de andar, depois, difícil de simplesmente se arrastar, e depois ainda, de permanecer sentado… Mesmo nas situações cada vez mais elementares, que exigem cada vez menos esforço, o corpo não agüenta mais. Tudo se passa como se ele não pudesse mais agir, não pudesse mais responder.. o corpo é aquele que não agüenta mais”10, até por definição. Mas, pergunta o autor, o que é que o corpo não agüenta mais? Ele não agüenta mais tudo aquilo que o coage, por fora e por dentro. Primeiramente, o adestramento civilizatório que por milênios abateu-se sobre ele, como Nietzsche o mostrou exemplarmente em Para a Genealogia da Moral, ou mais recentemente Norbert Elias, ao descrever de que modo o que chamamos de civilização é resultado de um progressivo silenciamento do corpo, de seus ruídos, impulsos, movimentos, arrotos, peidos, etc. Em segundo lugar, a docilização que lhe foi imposta pelas disciplinas, nas fábricas, nas escolas, no exército, nas prisões, nos hospitais, pela máquina panóptica… Tendo em vista o que dissemos há pouco, deveríamos acrescentar esse terceiro plano mencionado: o que o corpo não agüenta mais é a mutilação biopolítica, a modulação estética, a intervenção biotecnológica, a digitalização bioinformática do corpo, o entorpecimento anestésico… Em suma, e num sentido muito amplo, o que o corpo não agüenta mais é a mortificação sobrevivencialista, seja no estado de exceção, seja na banalidade cotidiana. O “muçulmano”, o “ciberzumbi”, o “corpo-espetáculo” e “a gorda saúde”, “bloom”, por extremas que pareçam suas diferenças, ressoam no efeito anestésico e narcótico, configurando a impermeabilidade de um “corpo blindado11” em condições de niilismo terminal.

Nietzsche

Diante disso, seria preciso retomar o corpo naquilo que lhe é mais próprio, sua dor no encontro com a exterioridade, sua condição de corpo afetado pelas forças do mundo, e capaz de ser afetado por elas: sua afectibilidade. Como o observa Barbara Stiegler, para Nietzsche todo sujeito vivo é primeiramente um sujeito afetado, um corpo que sofre de suas afecções, de seus encontros, da alteridade que o atinge, da multidão de estímulos e excitações que lhe cabe selecionar, evitar, escolher, acolher12… Nessa linha, também Deleuze insiste: um corpo não cessa de ser submetido aos encontros, com a luz, o oxigênio, os alimentos, os sons e as palavras cortantes – um corpo é primeiramente encontro com outros corpos, poder de ser afetado. Mas não por tudo e nem de qualquer maneira, como quem deglute e vomita tudo, com seu estômago fenomenal, na pura indiferença de quem nada abala… A seleção e filtragem são uma condição mesma para se preservar a capacidade de continuar sendo afetado, sem ser destruído por aquilo que nos afeta? Mas por outro lado, como preservar tal capacidade de ser afetado, senão através de uma porosidade ao exterior, de uma permeabilidade, de uma passividade, até mesmo de uma fraqueza? Mas como ter a força de estar à altura de sua fraqueza, ao invés de permanecer na fraqueza de cultivar apenas a força? Gombrowicz referia-se a um inacabamento próprio à vida, ali onde ela se encontra em estado mais embrionário, onde a forma ainda não ‘pegou’ inteiramente13, e a atração irresistível que exerce esse estado de Imaturidade, onde está preservada a liberdade de “seres ainda por nascer”… Porém será possível dar espaço a tais “seres ainda por nascer" num corpo excessivamente musculoso, em meio a uma atlética autosuficiência, demasiadamente excitada, plugada, obscena, perfectível? Talvez por isso tantos personagens literários, de Bartleby ao artista da fome, precisem de sua imobilidade, esvaziamento, palidez, no limite do corpo morto. Para dar passagem a outras forças que um corpo excessivamente “blindado”, como diz Juliano Pessanha, não permitiria14. Será preciso produzir um corpo morto para que outras forças atravessem o corpo? José Gil observou o processo através do qual, na dança contemporânea, o corpo se assume como um feixe de forças e desinveste os seus órgãos, desembaraçando-se dos “modelos sensório-motores interiorizados”, como o diz Cunningham. Um corpo “que pode ser desertado, esvaziado, roubado da sua alma”, para então poder “ser atravessado pelos fluxos mais exuberantes da vida”. É aí, diz Gil, que esse corpo, que já é um corpo-sem-órgãos, constitui ao seu redor um domínio intensivo, uma nuvem virtual, uma espécie de atmosfera afetiva, com sua densidade, textura, viscosidade próprias, como se o corpo exalasse e liberasse forças inconscientes que circulam à flor da pele, projetando em torno de si uma espécie de “sombra branca15”. Não posso me furtar à tentação, nem que seja de apenas mencionar, a experiência da Cia Teatral Ueinzz que coordeno em São Paulo, na qual reencontramos entre alguns dos atores ditos psicóticos, posturas “extraviadas”, inumanas, disformes, rodeados de sua “sombra branca”, ou imersos numa “zona de opacidade ofensiva”, como dizia uma revista recente. O corpo aparece aí como sinônimo de uma certa impotência, mas é dessa impotência que ele extrai uma potência superior, nem que seja às custas do próprio corpo empírico.

Corpo virtual

Pois é às custas do corpo empírico que um corpo virtual pode vir à tona. Desde o artista da fome de Kafka até o homem-inseto, os personagens de Kafka reivindicam um corpo “afetivo, intensivo, anarquista, que só comporta pólos, zonas, limiares e gradientes.” Como diz Deleuze-Guattari, num tal corpo se desfazem e se embaralham as hierarquias, “preservando-se apenas as intensidades que compõem zonas incertas e as percorrem a toda velocidade, onde enfrentam poderes, sobre esse corpo anarquista devolvido a si mesmo16”, ainda que ele seja o de um coleóptero. “Criar para si um corpo sem órgãos, encontrar seu corpo sem órgãos é a maneira de escapar ao juízo”, do pai, do patrão, de Deus, é uma maneira de fugir a todo um sistema do juízo, da punição, da culpa, da dívida. Ao invés da dívida infinita em relação à instância transcendente, reivindica-se aí o embate dos corpos, num sistema da crueldade imanente. Nesse corpo desfeito e intensivo tal como aparece em Kafka, aparece uma vitalidade não-orgânica, inumana, e um combate: “Todos os gestos são defesas ou mesmo ataques, esquivas, paradas, antecipações de um golpe que nem sempre se vê chegar, ou de um inimigo que nem sempre se consegue identificar: donde a importância das posturas do corpo17.” Mas o objetivo do combate, diferentemente da guerra, não consiste em destruir o Outro, mas em escapar-lhe ou apossar-se de sua força. Em suma, o combate como uma “poderosa vitalidade não-orgânica, que completa a força com a força, e enriquece aquilo de que se apossa.”

Imanência

Temos já o direito de perguntar-nos. Mas afinal, o que é essa vitalidade não-orgânica que eles reivindicam? Em Imanência: uma vida, comparece um exemplo – o de Dickens. O canalha Riderhood está prestes a morrer num quase afogamento, e libera nesse ponto uma “centelha de vida dentro dele” que parece poder ser separada do canalha que ele é, centelha com a qual todos à sua volta se compadecem, por mais que o odeiem – eis aí uma vida, puro acontecimento, em suspensão, impessoal, singular, neutro, para além do bem e do mal, uma “espécie de beatitude”, diz Deleuze. O outro exemplo está no extremo oposto da existência: os recém-nascidos, que, “em meio a todos os sofrimentos e fraquezas, são atravessados por uma vida imanente que é pura potência, e até mesmo beatitude”. É que também o bebê, como o morimbundo, é atravessado por uma vida. Assim o define Deleuze18: “querer-viver obstinado, cabeçudo, indomável, diferente de qualquer vida orgânica: com uma criancinha já se tem uma relação pessoal orgânica, mas não com o bebê, que concentra em sua pequenez a energia suficiente para arrebentar os paralelepípedos (o bebê-tartaruga de Lawrence)19”. Com o bebê só se tem relação afetiva, atlética, impessoal, vital, pois o pequeno é a sede irredutível das forças, a prova mais reveladora das forças. É como se Deleuze perscrutasse um aquém do corpo empírico e da vida individuada, como se ele buscasse, não só em Kafka, Lawrence, Artaud, Nietzsche, mas ao longo de toda sua própria obra, aquele limiar vital e virtual a partir do qual todos os lotes repartidos, pelos deuses ou homens, giram em falso e derrapam, perdem a pregnância, já não “pegam” no corpo, permitindo-lhe redistribuições de afecto as mais inusitadas. Este limiar, entre a vida e a morte, entre o homem e o animal, entre a loucura e a sanidade, onde nascer e perecer se repercutem mutuamente, põe em xeque as divisões legadas por nossa tradição, e indica o que Deleuze pôde chamar de uma vida.

Vida nua, uma vida

Já podemos perceber a que ponto parecem vizinhas a tematização do limite entre o humano e o inumano feita por Deleuze para abordar o que ele chamou de uma vida, e aquela feita por Agamben para abordar o que ele chamou de vida nua, seja no caso do muçulmano, seja no caso do neomorto. Talvez caiba formular aqui a questão crucial. Como diferenciar a decomposição e a desfiguração do corpo necessárias para que as forças que o atravessam inventem novas conexões e liberem novas potências, tendência que caracterizou parte de nossa cultura das últimas décadas, nas suas experimentações diversas, das danças às drogas e à própria literatura, da decomposição e desfiguração que a produção do sobrevivente, ou a manipulação biotecnológica suscita e estimula? Como diferenciar a perplexidade de Espinosa, com o fato de que não sabemos ainda o que pode o corpo, do desafio dos poderes e da tecnociência, que precisamente vão pesquisando o que se pode com o corpo? Como descolar-se da obsessão de pesquisar “o que se pode fazer com o corpo” (questão biopolítica: que intervenções, manipulações, aperfeiçoamentos, eugenias..), e retomar a questão espinosista e vitalista, “o que pode o corpo”? É como se fosse preciso contrapor, por um lado, as potências da vida que precisam de um corpo-sem-órgãos para se experimentarem, e por outro lado o poder sobre a vida que precisa de um corpo pós-orgânico para anexá-lo à axiomática capitalística.

Mas talvez para que um apareça é preciso que o outro seja combatido, ou ao menos deslocado. Por exemplo, talvez para que aquilo que Deleuze chamou de uma vida possa aparecer na sua imanência e afirmatividade e até beatitude, é preciso que ela se tenha despojado de tudo aquilo que pretendeu representá-la ou contê-la ou codificá-la. Toda a tematização do corpo-sem-órgãos é uma variação em torno desse tema biopolítico por excelência, a vida desfazendo-se do que a aprisiona, do organismo, dos órgãos, da inscrição dos poderes diversos sobre o corpo, ou mesmo de sua redução à vida nua, vida-morta, vida-múmia, vida-concha. Mas se a vida deve livrar-se de todas essas amarras sociais, históricas, políticas, não será para reencontrar algo de sua animalidade desnudada, despossuída? Será a invocação de uma vida nua, de uma zoé como diziam os antigos, contra uma forma de vida qualificada, contra bios? Talvez Artaud pudesse ajudar-nos a desvendar esse imbróglio. Diz o tradutor de Artaud e de Deleuze para o japonês, Kuniichi Uno: “Mas ele [Artaud] nunca perdeu o sentido intenso da vida e do corpo como gênese, ou auto-gênese, como força intensa, impermeável, móvel sem limites que não se deixaria determinar nem mesmo pelos termos como bios ou zoé. A vida é para Artaud indeterminável, em todos os sentidos, enquanto a sociedade é feita pela infâmia, o tráfico, o comércio que não cessa de sitiar a vida e sobretudo a do corpo20”. Bastaria meditar a frase enigmática de Artaud: “Eu sou um genital inato, ao enxergar isso de perto isso quer dizer que eu nunca me realizei./ Há imbecis que se crêem seres, seres por inatismo./ Eu sou aquele que para ser deve chicotear seu inatismo”. E Uno comenta que um genital inato é alguém que não nasceu, e que portanto tenta nascer por si mesmo, produzindo um segundo nascimento a fim de excluir seu inatismo. Pensemos em Beckett que vai a uma palestra de Jung e o ouve comentar, sobre uma paciente: O fato é que ela nunca nasceu. E ele transporta essa frase para o contexto de sua obra. Ali, um eu que não nasceu escreve sobre aquele outro que sim nasceu. Essa recusa do nascimento biológico não é a recusa proveniente de um ser que não quer viver, mas daquele que exige nascer de novo, sempre, o tempo todo. O genital inato é a história de um corpo que coloca em questão seu corpo nascido, com as suas funções e todos os órgãos, representantes das ordens, instituições, tecnologias visíveis ou invisíveis que gerem o corpo. Um corpo que, a partir ou em favor de um corpo sem órgãos, desafia esse complexo sócio-político que Artaud chamou de juizo de Deus, e que nós chamaríamos de um biopoder… Essa recusa do nascimento em favor de um autonascimento não equivale ao desejo de dominar seu próprio começo, mas de recriar um corpo que tenha o poder de começar, diz Uno. A vida é este corpo, insiste ele, desde que se descubra o corpo em sua força de gênese, por um lado, e desde que ele se libere daquilo que pesa sobre ele como determinação. É, em todo caso, uma guerra à biopolítica… Talvez esse seja um dos poucos pontos em que concordamos com Badiou, quando afirma que para Deleuze o nome do ser é a vida, mas a vida não é tomada como um dom ou um tesouro, nem como sobrevida, antes como um neutro que rejeita toda categoria. Diz Badiou: “Toda vida é nua. Toda vida é desnudamento, abandono das vestimentas, dos códigos e dos órgãos; não que nos dirigimos para um buraco negro niilista. Mas ao contrário para sustentar-se no ponto em que se intercambiam atualização e virtualização; para um ser criador21”. Mas será que Badiou tem razão em designar essa uma vida evocada por Deleuze como vida nua? Em todo caso, essa vida desnudada a que se refere ele não pode ser, como já Uno o havia notado, simples zoé, a vida como fato, o fato animal da vida, ou a vida reduzida a esse estado de nudez biológica anexada à ordem jurídica pelo estado de exceção, ou destinada à manipulação tecnocientífica pelo movimento niilista do capital. Uma vida tal como Deleuze a concebe é a vida pensada como virtualidade, diferença, invenção de formas, potência impessoal, beatitude. Vida nua, ao contrário, tal como Agamben a teorizou, é a vida reduzida ao seu estado de mera atualidade, indiferença, disformidade, impotência, banalidade biológica. Para não falar na vida besta, exacerbação e disseminação entrópica da vida nua, no seu limite niilista. Se vida nua e uma vida são tão contrapostas, mas ao mesmo tempo tão sobrepostas, é porque num contexto biopolítico é a própria vida que está em jogo, sendo ela o campo de batalha, num sentido radical do termo. Contudo, como dizia Foucault, é no ponto em que o poder incide com força maior, a vida, que doravante se ancora a resistência, mas justamente, como que mudando de sinal.. Em outras palavras, às vezes é no extremo da vida nua que se descobre uma vida, assim como é no extremo da manipulação e decomposição do corpo que ele pode descobrir-se como virtualidade, imanência, pura potência, beatitude.

Pistas

Recuemos agora para o conceito central de Agamben do qual partimos. A vida nua, como se sabe, não pode ser pensada como um estado biológico natural, que existiria originalmente, para depois ser anexada à ordem jurídica pelo estado de exceção. Pois ela é precisamente, junto com o poder soberano, o produto dessa máquina biopolítica. Assim, não é possível recuar a um qualquer estágio originário. Ora, uma tal indicação, apenas alusiva, embora carregada de promessas políticas, está em Agamben cercada de cuidados. Por exemplo, não pode significar, como Foucault deixou entrever no final de seu A vontade de saber, “uma outra economia dos corpos e do prazer”, uma vez que o corpo já está preso a um dispositivo, e não poderia oferecer um terreno firme “contra as pretensões do soberano”. Já não temos, tampouco, condições de reeditar a distinção entre zoè e bios nos moldes antigos, a saber, da vida em casa e da vida na pólis, pois a vida a mais “privada” tornou-se imediatamente “política”, na esteira da definição original de Foucault sobre a biopolítica como “socialização” do corpo, num sentido agora alargado. Em suma, é como se não pudessemos regressar para aquém da vida nua produzida pelo campo, nem superá-la com um conceito qualquer de corpo prazeiroso ou glorioso. A célebre fórmula de Foucault, de que seríamos animais em cuja política está em questão nossa vida de seres viventes, deveria ser entendida também no sentido inverso, de que somos cidadãos em cujo corpo natural está em questão a própria política.

A conclusão de Agamben é apenas indicativa. Seria preciso, diz ele ao final de seu primeiro livro sobre o homo sacer, “fazer da própria vida nua, o local em que constitui-se e instala-se uma forma de vida toda vertida na vida nua, um bios que é somente a sua zoè.” Idéia de todo enigmática, indicando, talvez, um outro sentido possível para essa zoè (“se denominamos forma-de-vida este ser que é somente sua nua existência”) e que quiçá se ilumine com a afirmação de que a cada dia parece mais inaceitável a cisão operada pelo poder entre o fato da vida e a forma-de-vida, e que só quando a vida deixar de ser concebida como um mero fato poderá tornar-se leque de possibilidades, isto é, variação de formas de vida. Apenas então pode-se pensar a conjunção indissociável entre vida e forma-de-vida – mas a vida concebida já como potência de variação de formas de vida22.

Controvérsias

Como se vê, o conceito de vida nua parece mais do que pertinente na leitura de um vasto leque de fenômenos contemporâneos, desde a “biologização” da vida até o estado de exceção como política de governo. No entanto, é preciso admitir que ele não é uma unanimidade. Valérie Mérange lembra que os relatos literários dos sobreviventes de campos mostram sempre signos de uma afirmação vital e política fundamentais. Mesmo no relato de Robert Antelme, A espécie humana, ou outros, há um elogio do simples fato de viver em si, despojado das superestruturas morais e sociais – uma espécie de vida desculpabilizada (num certo sentido, o próprio Agamben o admite). O que ela quer dizer é simples: não que essa vida que parece nua e animal seja bela, mas que ela só é nua em aparência, pois já é sempre composição de relações, amizades intensas, vida viva, natureza naturante, força produtora de formas de vidas, de estratégias, de avaliações – mesmo a vida daqueles que segundo o relato de Primo Levi eram chamados de muçulmanos. Até o silêncio, a recusa de falar ou de se alimentar já é expressão de uma riqueza de relações23. Quando é designada pelos poderes como vida nua, desprovida de toda qualificação que a viria proteger, a vida não tem escolha, para resistir, senão pensar-se para além do julgamento e da autoridade que a condenam, como potência se autorizando a si mesma, recusando toda autoridade. Então, a vida nua já não se submete a uma soberania que lhe é exterior, e afirma a sua própria. É a imanência pura de que nos fala Deleuze a propósito desses momentos extremos em que uma vida cessa de ser pessoalmente qualificada e se recusa a todo desdobramento dialético. O erro seria submeter esta imanência como objeto à reflexão do sujeito, que se pergunta o quê, dessa matéria informe, ele poderia representar-se… Nada. Mas é só se se fica na imanência pura, na imanência da imanência, que se pode considerar que também no campo a vida como objeto político se voltou contra o sistema que queria controlá-lo. Algo como: não é preciso do homem para resistir, a vida se basta, às vezes é preciso liberar-se do homem, demasiado humano.. A autora usa o exemplo dos autistas, onde também aparecem essas linhas, nos limites do humano, ali onde o sistema do juízo estaria suspenso, razão pela qual, diz Deleuze, seria preciso escrever para os idiotas… Mesmo Canguilhem, diz ela, falava na potência artística e linguageira em obra no “maneirismo original da vida”…

Para concluir, retomando os termos de nosso trajeto mais contemporâneo. Se os que melhor diagnosticaram a vida bestificada, de Nietzsche e Artaud até os jovens experimentadores de hoje, têm condições de retomar o corpo como afectibilidade, fluxo, vibração, intensidade, e até mesmo como um poder de começar, não será por que neles ela atingiu um ponto intolerável? Não estamos nós todos nesse ponto de sufocamento, que justamente por isso nos impele numa outra direção? Talvez haja algo na extorsão da vida que deve vir a termo para que esta vida possa aparecer diferentemente… Algo deve ser esgotado, como o pressentiu Deleuze em L´épuisé, para que um outro jogo seja pensável. Os possíveis que temos repertoriados em nosso corpo deveriam ser esgotados, se é que já não o foram, para que, na corrosão de um corpo esgotado que não agüenta mais, uma possibilidade outra surja, uma possibilitação. Obviamente, tocamos aqui no ponto mais paradoxal, a saber, de como em certas condições a vida nua levada a seu extremo é capaz de revelar o que Deleuze chama de uma vida. Essas invocações Artaud, Primo Levi, Agamben, Deleuze, talvez nos ajudem a pensar o que mais nos parece enigmático, e que deixo em suspenso, à guisa de conclusão. Trata-se do termo sobrevivente, com o qual comecei. Em francês diz-se Survivant. Esse termo se presta a uma estranha ambigüidade. Por um lado evoca o sobrevivente, por outro, como quando se diz Surhomme, evoca o Superhomem. Em outros termos, o sobrevivente não é um looser, ao contrário, ele é também um supervivente, é ali onde coincidem o mínimo e o máximo de vida, nesta vida desnudada.


1 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

2 G. Agamben, Ce qui reste d´Auschwitz, Paris, Payot & Rivages, 1999.

3 J. Améry, Par delà le crime et le châtiment, Arles, Actes Sud, 1995

4 P. Levi, É isto um homem?, Rio de Janeiro, Rocco, 1987.

5 G. Agamben, Ce qui reste d´Auschwitz, op. cit., p. 205.

6 Jurandir Freire Costa, O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo, Rio de Janeiro, Garamond, 2004.

7 Paula Sibília, O homem pós-orgânico, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 2002.

8 S. Zizek, Bem-vindo ao deserto do real, São Paulo, Boitempo, 2003, p. 108.

9 Tiqqun, Théorie du Bloom, Paris, La Fabrique, 2000, e a revista Tiqqun, 2001.

10 David Lapoujade, “O corpo que não agüenta mais”, in D. Lins (org.), Nietzsche e Deleuze, Que pode o corpo, Relume Dumará, Rio de Janeiro, 2002, p. 82 et sq.

11 Juliano Pessanha, Certeza do Agora, São Paulo, Ateliê Ed., 2002.

12 Barbara Stiegler, Nietzsche et la biologie, Paris, PUF, 2001, p. 38.

13 Witold Gombrowicz, Contre les poètes, Paris, Ed. Complexe, 1988, p. 129.

14 Juliano Pessanha, Certeza do Agora, op. cit.

15 José Gil, Movimento Total, Lisboa, Relógio d´Água, 2001, p. 153.

16 G. Deleuze, Crítica e Clínica, São Paulo, Ed. 34, p. 149.

17 G. Deleuze, Crítica e Clínica, op. cit., p. 149-150.

18 G. Deleuze, Crítica e Clínica, op. cit.

19 G. Deleuze, Crítica e Clínica, op. cit., p. 151.

20 K. Uno, “Pantoufle d’Artaud selon Hijikata”, inédito.

21 A. Badiou, “De la Vie comme nom de l´Être”, in Rue Descartes, n° 20, Paris, PUF, 1998, p. 32.

22 Giorgio Agamben, “A imanência absoluta”, in Éric Alliez (org.), Gilles Deleuze – uma vida filosófica, São Paulo, 34 Letras, 2000.

23 Valérie Mérange, Chimères, n° 39, Paris, p. 59.


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- Auteur : Peter Pál Pelbart - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
- Titre : A vida desnudada
- Date de publication : 10-09-2011
- Publication : Revue Silène. Centre de recherches en littérature et poétique comparées de Paris Ouest-Nanterre-La Défense
- Adresse originale (URL) : http://www.revue-silene.comf/index.php?sp=comm&comm_id=60
- ISSN 2105-2816