Traduções do corpo para a cena e no texto shakespeariano (1591-1613)
François Laroque - Universidade de Paris III (Sorbonne Nouvelle, Paris).
1“Bless thee, O Bottom, bless thee, thou art translated!”(A Midsummer Night’s Dream, III.1.113-14) O que se convencionou designar pelo termo de “corpus” shakespeariano é o conjunto de obras formado tanto pelas trinta e sete peças escritas pelo dramaturgo e publicadas, quanto ao essencial, no in folio de 1623, como pelos seus poemas narrativos, Vênus e Adônis e A Violação de Lucrecia e os Sonetos, para citar apenas os mais importantes, o que, portanto, nos remete a textos impressos. Se temos a prova de que o autor da dedicatória ao misterioso Sr W. H. realmente preocupou-se com a edição de sua poesia, o mesmo não acontece com sua obra teatral, que, sem dúvida, julgava ser efêmera, quando não secundária, pois, a seu ver, ela só existia para as cenas teatrais onde era interpretada. Ora, na época, nos palcos, o que importava era apenas o corpo do ator, vestido com suntuosos trajes que tinham pertencido a aristocratas. Estes os legavam a seus servidores que os revendiam depois aos proprietários de teatro, como Philip Henslowe, que, por sua vez, alugavam-nos aos atores. De fato, as leis suntuárias, que então vigoravam, não permitiam o uso desse tipo de trajes por pessoas de condição social inferior. A partir daí, a questão é de saber como restituir o personagem de Ricardo de Gloucester com sua claudicação e o braço atrofiado, que o caracterizam em Ricardo III, como representar as fadas do Sonho de uma Noite de Verão ou ainda o fantasma de Hamlet (na época, existia um “traje da invisibilidade”, que deveria ser usado por este tipo de personagem). Fica assim colocada toda a questão da encarnação no teatro e o fenômeno da “tradução” do corpo remete, antes de tudo, ao ofício de ator, à maquilagem, ao traje e ao gestual desenvolvido para interpretar Viola, na Noite dos Reis, Hamlet ou Coriolano. Mas há também as imagens do texto. O que fazer com esse feixe de sinais que completa ou contradiz as indicações cênicas? Convém, de certo, levar em conta as convenções da época ou do gênero. E sabe-se que as cenas de batalha, os combates ou os duelos davam ensejo a verdadeiros espetáculos sobre essas cenas populares dos anos 1590-1610. Tudo isso agradava muito a platéia da época, enquanto que, nos dias de hoje, esses momentos são freqüentemente estilizados, quando não encenados rapidamente ou simplesmente suprimidos. Quanto à nudez, hoje tão difundida, era, então, algo impossível de aparecer, mesmo porque os papéis femininos eram desempenhados por rapazes (boy actor). Quero examinar aqui alguns aspectos da tradução do corpo para a cena e no teatro de William Shakespeare, partindo de alguns exemplos que darão, espero, uma idéia da complexidade e da variedade dos temas, das situações e das imagens às quais este trabalho está associado. I. Problemática do corpo e de sua tradução na cena shakespeariana Como se sabe, os papéis de mulheres eram atribuídos a rapazes, que atuavam na condição de aprendizes da trupe, que, por sua vez, era designada pelo nome de “Servidores” (da Rainha, do Almirante, do Camareiro do Rei3 ou, mais tarde, do Rei). Eles encarnavam no teatro o sexo oposto, antes que suas vozes tivessem mudado. Não eram, portanto, “castrati”, ao contrário dos contra-tenores da Sistina. Cleópatra, ela mesma interpretada por um boy actor zomba disso no final de Antônio e Cleópatra:
Como monstraram filmes recentes, Shakespeare in Love, com a fantasia de Viola de Lesseps transformada em Master Kent, e Stage Beauty, onde o ator Ned Kynaston interpreta Desdêmona no palco da Restauração, para a grande satisfação do diarista Samuel Pepys, que o considera ainda mais convincente do que uma verdadeira mulher, era ali posta em prática toda uma série de códigos e convenções, com os quais Shakespeare jamais cessou de jogar, insistindo sobre a ambigüidade de tal procedimento e os mal-entendidos que este poderia acarretar: mulher apaixonando-se por outra, disfarçada de homem, como na Noite dos Reis e em Como quiseres. Ironicamente, é quando os rapazes que interpretam mulheres disfarçam-se em homens que os códigos são postos em evidência:
A aparência e o aspecto exterior servem para disfarçar os receios, que, em conseqüência, são rechaçados para o campo da intimidade. Portia, em O Mercador de Veneza, é mais direta ainda, quando comunica à sua criada Nérissa sua decisão de vestir uma roupa de homem para tomar a defesa de Antônio, do qual Shylock exige uma libra de carne, em virtude do contrato assinado entre eles para um empréstimo de mil ducados:
Os subentendidos picantes são bastante insistentes nesse diálogo, como se pode observar com os verbos “lack” (“o que nos falta”), referindo-se ao que faz falta à mulher, e “turn” (“virar”), que sugere um retorno, ou seja, uma forma de se traduzir de outro modo e, ao mesmo tempo, envolve uma idéia de penetração. No final da Noite dos Reis, encontramo-nos frente a uma impossibilidade cômica. Viola, disfarçada de homem, anuncia ao duque Orsino que ela é uma mulher e que irá vestir-se como tal. O problema é que suas roupas femininas foram entregues a um capitão, que foi colocado na cadeia pelo intendente Malvólio. Este ficou com a chave da cadeia e acaba de deixar o palco, furioso, prometendo se vingar. O que o espectador retém é que Viola continua sendo um homem e que só será realmente uma mulher quando, enfim, estiver vestida como tal, o que parece estar excluído, haja vista a complicação da situação final. Durante o desfecho, o véu não se levanta completamente e a mulher permanece um homem como os outros. Aliás, como mostra Thomas Laqueur, em seu livro A Fábrica do Sexo7, o modelo de um corpo unisexo, onde a vagina e os ovários eram a imagem em espelho interiorizado do pênis e dos testículos, prevalecia junto aos anatomistas, como se pode constatar nas numerosas ilustrações reproduzidas no livro. Os órgãos sexuais do homem e da mulher podiam virar-se pelo avesso, como “uma luva de couro de cabrito” (III.1.12), retomando a imagem do palhaço Feste em A Noite dos Reis. É portanto essa reversibilidade dos dois sexos dentro de um sistema humoral diferente (quente e seco para o homem, úmido e frio para a mulher), que servia de fundamento teórico, ou, em todo caso, fisiológico, para a tradução do rapaz em mulher, depois, do travesti-mulher em homem, na cena dos teatros ingleses da Renascença. Porém, esses jogos de travestimento não pertencem somente à cultura teatral inglesa. Eles remetem também ao mundo do carnaval, no qual Shakespeare, tanto quanto Rabelais, inspira-se, para traduzi-lo em linguagem dramática. É o que ele faz com o personagem de Sir John Falstaff, nas duas partes de Henrique IV e em As Alegres Comadres de Windsor. Na peça histórica, o gordo cavaleiro comenta sobre a gordura excessiva que o feminiza e, aliás, assim que ela derrete um pouco, exclama, desolado: “Ai, minha pele está sobrando e pareço uma velha senhora, num vestido largo demais para ela8”. Sua pança atrapalha-o, quando está no campo de batalha e, de certa forma, ele a recrimina:
Esta passagem opõe a palavra “belly” (a pança) a “womb” (a matriz feminina), o que mostra que Falstaff assimila-se a uma mulher gorda, imagem que lembra, em contraponto, o Sonho de uma noite de verão, quando Titânia fala de sua amiga mortal, que ria com ela ao ver as velas dos navios “ficarem grávidas/E ver o vento travesso inchar seus ventres10”. Na única comédia inglesa de Shakespeare escrita, ao que parece, a pedido expresso da rainha, que desejava ver Falstaff apaixonado, o amante escondido no apartamento de Mistress Ford só pode escapulir fazendo-se passar por mulher, a “gorda”, a “velha de Brentford”, que, de passagem, o marido ciumento chama de “vagabunda11”. Daqui por diante, tudo se esclarece: Falstaff, cujo próprio nome (preferido ao de Sir John Oldcastle, o nome escolhido inicialmente) se divide em “false staff” e, portanto, significa literalmente “imbecil”, isto é, “sem bastão”, sem o baculus ou “staff”, que nos remete ao falo. O cavaleiro barrigudo encarna, portanto, o homem emasculado, personagem grotesco que não difere muito de uma mulher. II. O corpo carnavalesco, o brasão e a ferida No contexto carnavalesco da taverna, o corpo de Falstaff é comparado ao de um boi que está sendo preparado para a grande comilança da terça-feira gorda (o príncipe Hal o trata de “boi assado de Manningtree, cuja barriga está bem recheada12”, sendo que Hal se vê comparado a uma pele de enguia e o juiz Shallow a uma raiz de mandrágora. Reencontramos a alegre gramática dos insultos festivos que opõem os gordos aos magros, como no quadro de Peter Bruegel, O Combate entre o carnaval e a quaresma. O grotesco, o modo hiperbólico e agonístico da injúria têm aqui, entre outras funções, a de eufemizar o político e o macabro, dissimulando-os atrás da máscara da exuberância cômica e da copia rerum. Ao evocar assim o mundo alegre da festa de São Martim, o rega-bofe carnavalesco e o vinho servido a rodo, esquece-se um pouco a hecatombe da guerra civil que está devastando o reino da Inglaterra e o sangue derramado que a terra bebe como um vampiro. A imagem do grotesco permite dar uma visão anamorfótica da realidade histórica e, assim, torná-la menos dolorosa. Da mesma forma, em As Alegres Comadres de Windsor, o mito de Acteão se vê “moralizado”. Assim, a amputação dos membros do caçador de Tebas, dilacerado pelos seus próprios cães, que não o reconheciam mais quando ele foi metamorfoseado em veado, por ter visto Diana banhando-se com suas ninfas, torna emblemático o tema popular e libertino da infidelidade conjugal. Uma outra vertente e outra versão do grotesco carnavalesco consiste em criar uma correspondência entre o calor das cozinhas, onde são assadas as carnes para a festa, e o fogo do inferno onde queimam as almas danadas. O inferno também designava o sexo feminino, como no célebre dístico que encerra o soneto 129: “Todos nós sabemos que é verdade, no entanto, ninguém parece saber fugir deste céu que leva o homem para o inferno”. De fato, comentando sobre a prostituta Doll Tearsheet (“boneca que rasga os lençóis”), Falstaff diz que ela “já está no inferno, queimando as pobres almas13”, fazendo alusão à dor ardente (“burn” em inglês) provocada pelas doenças venéreas. Quanto a Bardolph, um de seus companheiros de libações, “sua face é a cozinha particular de Lúcifer, onde ele assa os bêbados14”. Ao lado desses infernos cômicos, Shakespeare não hesita em dar uma visão muitas vezes bastante realista do corpo doente, corroído pela sífilis. De fato, basta ver os conselhos dados pelo misantropo Timão de Atenas a Frínia e Timandra, as duas prostitutas que acompanham Alcibíades:
A sexualidade é apresentada como sendo profundamente viciada e, aos olhos do soldado raso que é Tersito, o amor contra a natureza entre Aquiles e Patrocle é algo ainda pior:
III. A ferida e os brasões do corpo como alfabeto de uma língua traduzida em imagens “falantes” A visão mais atroz, quase insustentável, é, sem dúvida, a de Lavínia, violada e mutilada, onde seu pai, Titus, vê uma “carta da infelicidade, que fala apenas por signos17” (cortaram-lhe a língua) e que seu irmão Marcus assim descreve:
O corpo é traduzido em fonte, em riacho e em nascente, assim como as mãos cortadas serão mais adiante designadas pela imagem dos galhos podados de uma árvore. Retorna-se à natureza, à água, ao sol e às árvores, para eufemizar o sofrimento e dar dele uma representação emblemática. Em O Conto de Inverno, o sofrimento de Hermione, rejeitada e condenada por seu marido, por causa de um suposto adultério, é transmitido através da arte. Fingindo-se de morta, a rainha, com a cumplicidade de sua acompanhante Paulina, é, na verdade, transformada em estátua viva, enclausurada durante dezesseis longos anos numa capela, antes de acordar, em contato com o amor reencontrado. Mas, antes do desenrolar desta cena, na qual a situação teatral espetacular submerge o final da peça em meio à emoção, o vagabundo velhaco que é Autolycus, malabarista e vendedor de baladas e de quinquilharias para as damas do reino de Polixene, na Boêmia, havia tentado infundir pavor no coração do camponês, descrevendo-lhe suplícios tão atrozes quanto cômicos:
A comicidade nasce do exagero e do efeito provocado pelo pavor que o impostor Autolycus, que se faz passar por um cortesão, consegue infundir no filho do camponês. Portanto, é o contexto que permite desarmar o sentimento do horror ou da atrocidade, de forma que a tradução do corpo é apenas virtual ou puramente metafórica. Em compensação, quando Cleópatra, que se declara “enegrecida pelos apertões amorosos de Febus” (Antônio e Cleópatra, I.5.28), fica sabendo que Otávio tem a intenção de arrastá-la atrás de sua carruagem/char quando de sua entrada triunfal em Roma, ela recorre a imagens que anunciam as de Autolycus e que, mesmo sendo hiperbólicas, não têm nada de cômico:
Dito isso, a peça fica marcada por um componente de caráter sado-masoquista, com uma Cleópatra que tiraniza o mensageiro portador de más notícias (Antônio casa-se de novo com Otávia), quando ela o ameaça com todos os tipos de suplícios, cada um mais atroz que o outro. O ferimento físico ou amoroso está no âmago da obra. Assim, vê-se um personagem, oportunamente denominado Scarus (“scar” em inglês significa cicatriz), descrever para Antônio sua ferida, que se reabriu durante o último combate: Além do jogo de palavras sobre “aitche” (a letra H) e “ache” (a dor), que só se pode perceber e compreender no original, esse detalhe do texto indica que o ferimento está inscrito no corpo como um alfabeto, um código que convém decifrar ou traduzir. Ocorria o mesmo para as “armas falantes”, isto é, para a heráldica, que utilizava partes do corpo, das coisas ou dos animais, para traduzir o nome, assim como na moda dos brasões e contrabrasões poéticos, introduzida por Marot e à qual Shakespeare freqüentemente faz referência. Isto é particularmente visível e significativo em Romeu e Julieta, onde vários sonetos são encaixados no texto e onde os brasões do corpo são exibidos pelos namorados, enquanto que a Ama ou o Mercúcio dão deles uma versão burlesca, paródica ou obscena (técnica dita do contrabrasão). O longo monólogo sobre “a rainha Mab”, que miniaturiza o corpo, corta-o em micro-unidades e o recompõe numa ordem divertida, lembra as telas de Arcimboldo ou as gravuras estranhas dos Sonhos droláticos de Pantagruel. Se os jogos do amor permitem advinhar o nome do(a) amado(a), que se encontra misteriosamente traduzido e declinado numa série de imagens-chaves (“Jewel”/ “Jule”/ “July”/ “Juliet” e “pilgrim”/ “Romeo”/ “romitaggio”/ “roamer”…), o mundo do corpo e da sexualidade traduz-se para a Ama em termos de um gestual relativamente elementar, que opõe, na mulher, o instante do acasalamento (“fall backward”, isto é, cair de costas) e o da queda e da morte (“fall on thy face”, cair para frente, com a cabeça em primeiro). Quanto a Mercúcio, o homem-túmulo (“grave man”), ele descreve o amor físico recorrendo a uma tradução vegetal mais crua:
A nêspera e o cabo de pera são uma transposição vegetal do corpo dentro de uma visão que faz referência a um corpo-jardim ou jardineiro. Sabe-se também o papel desempenhado nessa peça pelas plantas medicinais, ora poção/remédio, ora veneno, e a importância dos ciclos sazonais, para essas flores tão rapidamente desabrochadas e logo murchas que são os dois amantes. No sentido inverso, Mercúcio dá vida ao inanimado, traduzindo o quadrante do relógio em termos decididamente fálicos: Vê-se que, para Mercúcio, defensor da amizade e crítico do amor, que, segundo ele, envenena (“fishified”) Romeu, a ponto de fazer-lhe perder seu esperma (“roe”), reduzindo-o ao estado de pura lamentação (Romeo-roe = “me O”!), o folclore (a rainha Mab) e o pensamento mágico (a animação poética que acorda o ser e a vida das coisas) constituem o refúgio e o veículo do obsceno, isto é, do que acontece fora da cena. A última dimensão que desejo abordar diz respeito às metáforas e às metamorfoses do corpo no teatro de Shakespeare. IV. Metáforas e metamorfoses do corpo As traduções do corpo em corpo político são uma das metáforas mais freqüentemente utilizadas no teatro desse final do século XVI e começo do século XVII, devido a uma visão ao mesmo tempo orgânica e hierárquica da sociedade. No começo de Coriolano, é na fábula do Ventre, que Menenius conta para a plebe esfomeada, na tentativa de acalmar sua cólera, que encontramos uma de suas expressões mais sistemáticas e completas. Após ter comparado os cidadãos aos membros do corpo, revoltados contra a prosperidade do Ventre (o Senado e os aristocratas), acusado de querer ficar com tudo, Menenius explica que os membros não poderiam viver sem o ventre, pois é ele quem, através do sangue, garante a redistribuição da comida por todo o organismo: Após ter qualificado o Primeiro Cidadão de “dedão do pé”, Menenius conclui, explicitando o sentido de sua fábula, traduzindo-a em uma linguagem clara: Esse bom ventre, são os senadores de Roma.
A tradução do corpo em metáfora política, em seguida, volta ao pé da letra, quando Coriolano reclama que se arranque “a língua da multidão múltipla” (III.1.158-59) ou, quando, no sentido inverso, o tribuno Sinicius trata o herói romano “de mal a ser extirpado» (III.1.296). A plebe, por sua vez, torna-se a “multidão das cem cabeças”, (II.3.12), “a semente prolífera” (II.2.70), o “peixe miúdo” (III.1.92), ou ainda, a “Hidra” (III.1.96). Nas peças históricas anteriores, sobretudo na primeira tetralogia, Jack Cade, o artesão rebelde do Kent, que irá transformar Londres em um barril de pólvora, é também diabolizado e animalizado pelo duque de York (oposto ao reino de Lancaster, de Henrique VI - é a guerra das Duas Rosas), que o descreve como um porco-espinho eriçado de espinhos:
Sobrepondo duas imagens contraditórias, uma, trágica e cruel, do soldado perfurado de flechas, fazendo lembrar um pouco o martírio de São Sebastião e a outra, cômica e carnavalesca, do homem porco-espinho e, depois, do dançarino mourisco sacudindo seus sininhos, Shakespeare opera uma tradução ao mesmo tempo corporal e genérica, que leva a peça para o registro do grotesco. Esta será, aliás, a tonalidade geral dessas estranhas cenas de insurreição popular, apresentadas como um carnaval sangrento, onde as cabeças cortadas de Lord Somer e de seu genro são espetadas em lanças, como se fossem marionetes, antes que o próprio rebelde, traído pelos seus e esfomeado, seja decapitado por um gentleman de Kent, que o descobre comendo grama em seu jardim. A outra metamorfose, ou translação corporal, que desejo comentar, é a do artesão Bottom, com uma cabeça de asno enfiada até os ombros, que lhe foi colocada pelo duende Puck, enquanto ensaia com os outros artesãos a peça de Pyrame e Tisbé, que pretende apresentar na corte do duque de Atenas, Teseu, por ocasião de seu casamento com a amazona Hipólita:
Bottom entra, assim, bruscamente na categoria dos monstruosos. Homem com cabeça de asno, ele é uma espécie de minotauro cômico dentro do labirinto da floresta perto de Atenas. Mas, sua transformação é antes de tudo uma tradução, como diz o próprio Shakespeare, que recorre aqui ao verbo “translated”, quando Quince exclama literalmente: “você está traduzido”. O nome de Bottom significa efetivamente o fundo, a bobina do fio do tecelão, mas também o traseiro, de modo que o asno (“ass”) remete sistematicamente ao “cu” (“arse”). Ora, o carnaval é justamente o fato de colocar tudo de “ponta cabeça” e, portanto, de ter o traseiro no lugar da cabeça, o que mostra que a cabeça de asno que o dramaturgo nos mostra nada mais é do que uma tradução visual do inglês popular. Os monstros estavam ainda ligados ao mundo dos fenômenos sobrenaturais, como se vê nos relatos dos viajantes da Renascença, que retomavam as fábulas de Heródoto, de Marco Polo ou de Mandeville, para descrever as amazonas, os “sciapodes28”, ou ainda, como Otelo, os canibais e os “blemmyes”, homens que tinham a cabeça abaixo dos ombros:
Esses relatos de viagem assustam e fascinam Desdêmona, que literalmente bebe as palavras do Mouro: “[…] Ela […] com um ouvido ávido/Devorava os meus discursos30”. Não se insiste o suficiente sobre esse efeito performático do discurso de Otelo, que revela a existência de uma forma de contaminação do ouvinte (no caso, da ouvinte), onde a tradução do corpo imaginário dá lugar a uma transformação metafórica do receptor no ser fictício descrito pelo locutor. Shakespeare dá, assim, a entender que a orelha feminina canibaliza a língua do contador, retomando em filigrana a imagem de um outro monstro, um sexo feminino predador e insaciável. Assim, encontra-se prefigurada a obsessão da infidelidade da esposa, que conduzirá um marido louco de ciúmes a sufocar aquela que ama. Corpos masculinos convertidos em corpos femininos, corpos doentes ou mutilados, corpos recortados, erotizados, traduzidos em imagens vegetais ou animais, corpos brasões, corpo político servindo de metáfora e de referente ideológico para uma sociedade que busca legitimar suas instituições, corpos metamorfoseados em monstros carnavalescos ou em imagens do além, que dão a mulher a cara de outro, tais são algumas das figuras do corpo e de suas traduções que escolhemos para apresentar, entre os inúmeros exemplos possíveis no interior do vasto corpus shakespeariano. A tradução do corpo e de suas partes está, portanto, inserida no próprio âmago da atividade poética e dramática e permite uma certa labilidade genérica, de uma peça para outra, sem que por isso se possa afirmar que tenha uma verdadeira coerência ou qualquer continuidade no conjunto da obra. Na verdade, a importância desse topos vem de um dado histórico e sociológico da Inglaterra elisabetana, qual seja, a necessidade de contornar a interdição feita às mulheres de atuar em cena. Portanto, indiretamente e de um modo totalmente irônico, é, de certa forma, a censura e a austeridade das injunções da igreja protestante e das municipalidades puritanas que terão dado origem a essa apaixonante e maravilhosa proliferação do sentido. 1 Traduzido por Isabelle Boudet. Cf. também O Percevejo – online : http://www.seer.unirio.br/index.php/opercevejoonline/article/view/1360 2 Universidade de Paris III (Sorbonne Nouvelle, Paris). 3 Em inglês: chamberlain 4 Antônio e Cleópatra, V.2.212-17. 5 Como quiseres, I.3.105-110. 6 O Mercador de Veneza, III.4.58-78. 7 Paris, Gallimard, 1992, para a tradução francesa. 8 1 Henrique IV, III.3.2-3. 9 2 Henrique IV, IV.2.15-18. 10 Sonho de uma noite de verão, II.1.128-29. 11 Alegres comadres, IV.2.134-35. 12 1 Henrique IV, II.5.369-70. 13 2 Henrique IV, II.4.275. 14 2 Henrique IV, II.4.270-72. 15 Timão de Atenas, IV.3.150-57. 16 Tróilo e Créssida,V .1.15-19. 17 Titus Andronicus, III.2.12. 18 Titus Andronicus, II.4.21-31. 19 O Conto de Inverno, IV.4.728-34. 20 Antônio e Cleópatra, V.2.56-9. 21 Ibid., IV.8.3-5. 22 Romeu e Julieta, II.1.34-9 23 Ibid., II.3.111-12. 24 Coriolano, I.1.109-122. 25 Ibid., I.1.1.1.130-31. 26 2 Henrique VI, III.11.360-66. 27 Sonho de uma noite de verão, III.1.93-95. 28 Criaturas fantásticas, com uma só perna, tendo na extremidade um pé gigantesco. 29 Otelo, I.3.141-44. 30 Ibid., I.3.186-87. API standards ASME standards ansi standards iec 60601-1 IEC 60529 ASHRAE Standard 90.1 ASME B31.3 ___________________________________________________ - Auteur : François Laroque - Universidade de Paris III (Sorbonne Nouvelle, Paris).
- Titre : Traduções do corpo para a cena e no texto shakespeariano (1591-1613) - Date de publication : 10-09-2011 - Publication : Revue Silène. Centre de recherches en littérature et poétique comparées de Paris Ouest-Nanterre-La Défense - Adresse originale (URL) : http://www.revue-silene.comf/index.php?sp=comm&comm_id=62 - ISSN 2105-2816 |