Littérature et Idée Mythopoétique Poétique du récit Espaces littéraires transculturels Perspectives critiques en littérature et poétique comparées Recherches sur la littérature russe Musique et littérature Observatoire des écritures contemporaines
Recherche par auteur étudié  :
Recherche par thème  :
Recherche dans tout le site :
COLLOQUES


LE CORPS ET SES TRADUCTIONS / O CORPO E SUAS TRADUÇÕES
Walt Whitman contra Antonin Artaud?

Jacques Darras - Universidade de Picardie.


1

“Eu canto o corpo elétrico”, clama Whitman em 1855, em um célebre poema que levará esse verso como titulo, na sua terceira edição, em 1867. Aliás, um título excelente que, ainda hoje, conserva todo seu caráter de manifesto. A conjunção “corpo” e “eletricidade”, essa aproximação metafórica, é de um “brilho luminoso” genial. A eletricidade estava em pauta nesses tempos, e Edison apresentaria sua primeira lâmpada dez anos mais tarde. Quanto à eletricidade estática, nós a conhecíamos desde os gregos. A sacada de gênio de Edison foi a de simplesmente antecipar, por meio de metáforas, uma descoberta iminente – ele nomeou um campo de experiências que estavam prestes a acontecer. E não seria possível uma melhor anunciação para o mundo moderno: “Eu canto o corpo elétrico” é mais vivo, mais econômico, do que o “Plein Ciel” [Em pleno céu] de Victor Hugo, que previa a aviação. Digo isso para relembrar aos poetas que a poesia sempre está além das forças emergentes, e ela tem a intenção de captá-las na linguagem escrita. A poesia, a verdadeira poesia, é a previsão, a ficção científica.

Em direção a uma democracia atomística

O que Whitman afirma ao dizer “Eu canto o corpo elétrico”? Aquilo que ele acredita ser a capacidade mais ativa da existência: o poder de atração. O seres humanos se atraem entre si. E trata-se de um magnetismo que passa pelo corpo, a realidade física dos corpos.

A estranha afabilidade da mão, que acaricia a carne nua dos corpos. (Filhos de Adão, 9)


O amor não passa de uma versão atualizada dessa atração. Quando ele é dito “cortês”, seguindo uma concepção das cortes medievais, e depois da monarquia européia, o amor é um ideal convencional, um ideal de sociedade. As boas maneiras das sofisticadas cortes do Renascimento, como as da cavalaria de Balthazar Gracian, são ausentes na obra do poeta. Walt Whitman representa uma nova raça de homem: o americano materialista. Com “Eu canto o corpo elétrico”, ele diz ao mundo o que pode ser interpretado por: sou um novo Lucrécio, tenho interesse pela sociedade, sou um poeta da matéria e do átomo. Aliás, ele já havia anunciado em sua “Canção de mim mesmo” (Song of Myself) uma parábola surpreendente, que se assemelha à Grande Ceia – ou seja, uma refeição conjunta – da divisão dos átomos:

For every atom that belongs to me as well belongs to you3

Somos, então, todos “filhos de Adão”. Temos todos os nossos átomos em comum. Possuímos um mesmo e único patrimônio genético. O que se tem a dizer contra essa democracia genética participativa, esse comunismo biológico? Nada. Como nenhum outro poeta que o precedeu, assim como nenhum outro posterior a ele, Whitman conseguiu unir, espontaneamente, as teorias evolucionistas de Darwin. Seu longo poema trata-se de um hino à atração e à evolução universal. As Folhas de Relva datam de 1855, a Origem das espécies aparece em 1859. Podemos e devemos ler os dois livros um com o outro; e acredito que não existe nenhum outro texto, poema, ensaio ou romance, em qualquer outra língua, que, à luz de Darwin, tenha tido a intenção de fazer uma síntese dinâmica tão apaixonada sobre os seres. Penso, ao contrário, que desde então conhecemos uma rejeição dessa síntese. Uma reação. Podemos nos perguntar qual seria o interesse de um Lucrécio americano ao se fazer de cantor de átomos? As leis da atrações sexuais se referem tanto aos animais quanto aos homens; elas têm um valor comum enquanto que nós, humanos, vemos nossa experiência como uma aventura singular. Ao que podemos responder: o sujeito humano é tanto o interesse de Whitman – e a comunidade atômica seu plano de fundo – que ele o tem como uma preocupação permanente. O primeiro de todos os poetas conhecidos, Whitman usa um “Eu” biográfico. O primeiro, ao lado de William Wordsworth, um romântico inglês que conta sua adolescência no Prelúdio (The Prelude), publicado somente cinco anos antes de Folhas de Relva. Mas o “Eu” de Whitman tem a vantagem de ser um sujeito mais existencial do que biográfico. Poderíamos quase – salvo uma exceção – qualificá-lo de “transcendental”, já que sua genialidade ultrapassa sua singularidade histórica. Whitman é um ator consciente de seus atos, julga-os e os interpreta, defende-os diante de um tribunal moral de excessão, mas permanente. Trata-se de um filósofo mais moralista do que psicólogo, mas ainda assim mais metafísico. Cujo modelo tende a ser Sócrates. Whitman, o Sócrates de Manhattan. Que entra em contato com o homem da rua, o homem das multidões de Edgar Poe, discute-os, e se simpatiza com eles, repreendendo-os, se necessário. A leitura de sua obra para além dos séculos – ele é muito consciente de sua posteridade e do “leitor hipócrita, seu semelhante, seu irmão”, como pode-se verificar, por exemplo, no poema “Crossing Brooklyn Ferry” – é quase como desvalorizar a incrível fala de Rimbaud, o famoso “Eu é um outro”. E essa é uma prática tão comum na obra de Whitman! O “Eu” whitmaniano é todos os outros ao mesmo tempo e sucessivamente. Não trata-se de uma alteridade, como a de Rimbaud, mas de uma semelhança, de uma fraternidade. Dos dois, Whitman é, sem dúvidas, o legítimo herdeiro da Revolução Francesa.

Uma sexualidade irrecuperável

Whitman é também muito mais escandaloso do que Sócrates! Aliás, foi até acusado de corromper a juventude com suas Folhas de Relva, que lhe custaram seu cargo de funcionário no Ministério da Segurança Nacional. Mas isso não é nada em comparação ao agitado processo que seus inimigos lhe prepararam após sua morte, e a conseqüente defesa não menos obstinada de seus amigos e discípulos. Na França, particularmente, o conflito opõe Gide e Claudel, culminando em uma ruptura entre os dois escritores. Ainda hoje Whitman conserva intacto o seu poder de chocar, de incomodar. Por quê? Primeiro, porque sua obra é sexual do início ao fim. Materialista e sexual. Nenhum poeta celebrou a tal ponto a diferença e a complementaridade das sexualidades humanas. Desse ponto de vista, os cinqüenta últimos anos da crítica witmaniana, quase todos consagrados a comprovar a sua homossexualidade, foram tristemente improdutivos. Whitman coloca a questão da homossexualidade como um fato biológico, social e filosófico, além de qualquer escolha (sexual) afirmada. Questiona-se até mesmo se a sua admiração pelo corpo sexuado não se pareceria com um tipo de totalitarismo. Pior, quando ele passa por uma venda de escravos sulista para substituir seu discurso pelo do negociante, sua audácia torna-se perigosa.

Leiloa-se um corpo de homem
(Pois antes da guerra, eu costumava ir à feira de escravos e assistir à venda),
Ajudo o leiloeiro, o incompetente não sabe nem metade de seu ofício.

Cavalheiros, observem essa maravilha,
Seja quantos forem os lances dos licitantes, nunca serão altos o bastante para ele (“Eu canto o corpo elétrico” 7)


………………………………
Escravista, Whitman? Claro que não! Sua participação na União, seu engajamento ao lado das forças democráticas do Norte, nunca falharam. Para ele, trata-se de uma demonstração, através de uma hipérbole negativa, do quanto o corpo humano (no caso o corpo do escravo) não pode ser negociado.

Isto não é só um homem, é o pai dos que serão pais quando chegar sua vez,
Nele o começo de estados populosos e ricas repúblicas,
Dele vidas imortais e inumeráveis com inumeráveis encarnações e gozos.

Como você é capaz de saber quem virá da prole de sua própria prole através dos séculos?
(de quem será que você teria saído se pudesse seguir a trilha dos séculos?)


Estaríamos então mais tranquilos? Começamos em um mercado de escravos, para terminar, felizmente, com Darwin. O qual, alguns anos depois, vai anunciar a polêmica hipótese de que a humanidade teve início na África, ao lado da Etiópia. Como pode-se perceber, Whitman é duplamente chocante. Ele joga com nossas sensibilidades anti-racistas e para isso ele rompe com todos os preconceitos racistas. Diríamos, em nosso vocabulário atual, que Whitman é “irrecuperável”. Completamente. Com exceção dos regimes autoritários, poderia-se objetar – visto o tanto que a “sexualidade” whitmaniana continua voltada em prioridade para a geração – a produção da espécie humana. Deve-se lembrar contudo que esse otimismo que orienta o crescimento demográfico dos regimes totalitários do século XX deve ser aqui entendido como uma resposta a Malthus e a suas teorias em voga no mundo vitoriano.

O paradoxo como arte da resistência

Conseqüentemente, o culto que Whitman consagra à sexualidade é também chocante e ambíguo. Mas a expressão desse culto, a espécie de liturgia semântica que o poeta elabora ao longo de seus poemas, é realmente inovador. Em sua obra, a velha arte do blason4 do corpo, tão praticada no Renascimento francês e italiano, retoma força. Assim como uma moderna prancha anatômica, pode-se vê-lo enunciar os órgãos, as funções e as utilidades do corpo, com escrúpulo, diversão e ânimo. Remetemos por exemplo o leitor à extraordinária lista do canto 9 do “Eu canto o corpo elétrico”, para constatar como a liberdade técnica do poema – o que chamaríamos de sua modernidade – é inseparável da pura liberdade. Whitman filia-se no caso à arte de Rabelais e Molinet, acrescentando porém às suas listas esse dado original essencial, responsável também pela originalidade do “corpo whitmaniano”: o sentido do ritmo. Existe uma “jazzística” espontânea do poeta de Manhattan, que provém, é claro, da cadência consonantal da língua inglesa, com o emprego de palavras compostas, mas também com o andar suave e gingado, com a camisa aberta e o casaco nos ombros, do transeunte da Broadway. Vê-se então o “esqueleto anatômico” começar milagrosamente a se mexer, feito um Golem, dando um quadro dinâmico das forças que explicam o movimento humano. O corpo whitmaniano é cinético, ele antecipa em alguns anos o surgimento do cinema:

Afetos, válvulas cardíacas, glote e úvula, sexualidade, maternidade,
Feminilidade, e toda a mulher, e o homem que tem a mulher como origem,
O útero, as tetas, os bicos dos seios, o leite, as lágrimas, o riso, os prantos, as trocas de olhares amorosos, os ímpetos de amor, a desordem do amor,
A voz, a expressão, a linguagem, os murmúrios, a fala alta e clara,
O alimento, a bebida, o pulso, a digestão, o suor, o sono, a caminhada, o nado,
A pose dos quadris, o salto, a sesta, o abraço apertado, o círculo de braços que se entrelaçam,
O humor variável dos sulcos da boca, das rugas do olho,
A pele, o bronzeado, as sardas, os pêlos,
A estranha simpatia da mão que acaricia a carne nua dos corpos…


Esse “nu descendo a escada” tem, havemos de convir, um pouco mais de carnalidade do que o puro diagrama de Marcel Duchamp. Não se trata de um grafo de movimentos, mas de um blason dinâmico em que se misturam os determinismos biológicos e os dramas emocionais. Aliás, essa sucessão caótica de planos e seqüências confere, conseqüentemente, não apenas uma dimensão epopéica ao funcionamento humano – do corpo humano; ela diminui dessa forma a autonomia do “eu individual”, do I myself, que inicia a Canção de Mim Mesmo. Aí está o paradoxo whitmaniano com que o leitor tem a obrigação de se confrontar se quiser mesmo entrar em sua poesia. Whitman afirma ao mesmo tempo: eu sou eu e sou um outro. A interpretação hegeliana de sua poesia algumas vezes proposta pode, é claro, se apoiar nessa fase dialética negativa. A consciência whitmaniana – ou seja, a consciência de mim – se afirma, ela também, opondo-se. Mas aí termina a contradição, que não se supera na síntese de um novo estado de consciência. A despeito de seu mestre e amigo da Nova Inglaterra, Ralph Waldo Emerson, Whitman não é um filósofo transcendentalista. Na obra de Emerson e seus amigos, o “corpo sexual” não vale. O corpo só passa a existir apenas na medida em que ele é meditação pura, um instrumento de encarnação que permite ao espírito reencontrar e juntar sua unidade (Emerson é um unitarista) dentro da multiplicidade do diverso. Essa frase dos Ensaios de Emerson é muito esclarecedora:

 

A Natureza é a encarnação do pensamento e ela volta ao pensamento, assim como o gelo volta a ser água e gás. O homem é feito de espírito precipitado e a essência volátil sempre foge, e para sempre, em direção a um estado de pensamento livre.


Nada a ver com Whitman! O corpo, na obra dele, resiste, a matéria resiste. O corpo whitmaniano não é o pensamento “precipitado” de Emerson, tal uma visão leiga e inocente da Queda original. Para Whitman, o corpo equivale ao pensamento, e o pensamento equivale ao corpo. Como não existe hierarquia, não existe transcendência. Tal equação algébrica não deixa de ser audaciosa; trata-se de uma equação com apenas uma incógnita, mas que acaba se revelando um imenso desafio! Não se conhece o terceiro elemento a que corpo e pensamento devam estar relacionados. Whitman não se pronuncia. Será ele o Espírito ou o Sujeito absoluto? Não. Será ele Deus? Curiosamente, Whitman aconselha não se interessar pela questão de Deus:

Disse que a alma não é maior que o corpo,
E disse que o corpo não é maior que a alma,
E nada, nem Deus, é maior que nosso verdadeiro eu,
E uma pessoa que ande cem metros sem sentir simpatia caminha para seu próprio funeral vestido com sua mortalha,
[…]
E digo à humanidade, Não fique especulando sobre Deus,
Pois eu que especulo sobre tudo não fico especulando sobre Deus,
(Não há seqüência de palavras pra dizer como estou em paz em relação a Deus e à morte).
Escuto e contemplo Deus em cada objeto, e assim mesmo não entendo quase nada,
Nem entendo como pode haver alguém mais maravilhoso do que eu mesmo. (Canção de mim mesmo 48)


O corpo, eterno “work in progress”

Entre a sensação e o entendimento, não teríamos, finalmente, que escolher? Este é um posicionamento pelo menos original na tradição ocidental. O que me faz lembrar de uma resposta do poeta inglês do Yorkshire, Basil Bunting, quando eu o entrevistava sobre seus antepassados Quaker: “Ser Quaker, disse ele, é ser um panteísta cristão”. Afirmação esta que melhor coresponde ao também filho de Quakers que Whitman foi – do lado materno –; mais do que todas as outras sabedorias budistas ou hindus às quais pretende-se relacioná-lo normalmente. Pois, ao contrário dos budistas, Whitman envolve-se com os sofrimentos do corpo, e ele entende, ao contrário dos cristãos, o prazer como princípio e finalidade da encarnação. Vejo aí um misticismo moderno. Curiosamente bastante próximo, devido ao tom, daquele de Emily Dickinson, a reclusa de Amherts. A quem tudo, nas aparências, opõe Whitman. Porém ambos os poetas manifestam a mesma displicência feliz diante dos dogmas e dos ritos, cada um encontrando sua igreja, seu templo, um na solidão de um jardim da Nova Inglaterra, outro em meio às multidões de Manhattan.

Tudo isso nos leva a uma simples constatação. A revolução whitmaniana provoca uma metamorfose da imagem do corpo. Aquela que nós, modernos, herdamos. Corpo higiênico, corpo atlético, corpo sensual e sexualizado, mas também corpo coletivizado, corpo culto, corpo submetido à rentabilidade produtiva. Chamamos de “americana” essa nova imagem do corpo. Porque ao mesmo tempo, na Europa – apesar de todos os esforços heróicos de um Jules Michemet para se render aos prazeres sexuais quando esteve no oceano Atlântico ou no Mediterrâneo – nada se produzia, havia somente a carniça baudelairiana, o corpo corroído pela tuberculose ou pela sífilis, doenças que triunfavam nessa época. As Flores do Mal prevalecia em relação às Folhas de Relva. Aproveitando da velha concepção medieval européia que via o corpo humano como esterco e adubo:

Lembre-se do que nós vimos, meu caro
Essa linda manhã de verão, tão doce;
Ao redor de um caminho com uma carniça infame
Sobre uma cama semeada de pedras

As pernas ao ar, como uma mulher lasciva,
Brilhando e suando os venenos,
Abria com indiferença e cinismo
Sua barriga plena de odores.

O sol brilhava sobre essa podridão,
Como se a quisesse cozinhar
E tornar cem vezes maior para a grande Natureza
Tudo o que ela havia agrupado.


Imaginem o que Artaud diria hoje em dia, diante da perspectiva das modificações genéticas! Nesse mesmo texto, censurado pela rádio francesa, mesmo que lhe tenha sido encomendado, Artaud propõe A busca da fecalidade. Na tentativa de modificar a carniça de Baudelaire – por meio de uma transposição metafórica em seu equivalente de pior dos dejetos: “Onde há cheiro de merda,/ há o cheiro dos homens”, diz ele, parodiando com ainda mais pertinência, e não se assemelhando à filosofia de Heidegger. É a ultima etapa antes da seguinte conclusão:

O homem está doente porque foi mal construído.
Deve-se optar por deixá-lo nu para esfregar micróbio que o faz coçar até a morte,
deus,
E com deus
Todos os seus ógãos não passam de um único

Porque una-se a mim se você quiser,
Mas não há nada de mais inútil do que um órgão.

Quando você lhe tiver feito do seu corpo um corpo sem órgãos,
Terá então resgatado todos os seus automatismos e se rendido à verdadeira liberdade

[…]

O corpo humano é uma pilha elétrica
Em que se castraram e recalcaram as descargas

E ele foi orientado para a vida sexual
Para as capacidades e os tons
Mesmo que tenha sido feito
Justamente para absorver
Por meio de seus deslocamentos voltaicos
Todas as liberdades incertas
Do infinito do vazio
Dos buracos do vazio
Cada vez mais incomensuráveis
De uma possibilidade orgânica jamais completa.


Não é paradoxal pensar nesse retorno ao “corpo elétrico” (o corpo humano é uma pilha elétrica)? Talvez o caráter convulsivo de Antonin Artaud tenha provocado um curto circuito, separando o corpo católico, deteriorado, da carniça baudelariana, do corpo afortunadamente atlético do protestante Quaker, de Manhattan.
Devo confessar que a minha primeira reação ao ler do texto de Artaud foi a de encontrar uma versão renovada do velho maniqueísta. Artaud, o cátaro, pensava comigo. Ou seja, alguém para quem este mundo é obra de um deus mal, do qual devem sair a alma purificada pelo batismo e a virtude para se juntar ao verdadeiro Deus. A origem de Artaud (Marseille) confirma minhas suspeitas em relação a ele de “puritanismo” mediterrâneo – idéia combatida pela Igreja romana, de santo Agostinho a santo Dominique. Sem qualquer intenção de conciliar as duas pesquisas, mas tentando identificar seu ponto comum e paradoxal, como acabo de fazer, em direção a uma finalidade espiritual própria da literatura, eu diria que o corpo moderno que Whitman anunciava é desde então um work in progress, que ele tenta se liberar das proibições religiosas que lhe rotulavam, que ele negocia com o sofrimento orgânico da existência, e por isso ele tenta inventar novas configurações de si próprio.
Como se parodiasse Ronsard, Baudelaire necrosa hostilmente – faço do verbo um transitivo –a tradição poética francesa do famosos soneto a Hélène. O “Quando você estivem bem velha”, de Villon ou de Adam de la Halle, se desfaz diante de nossos olhos. Ouçam as marteladas cravar os pregos – o prego – no caixão da bela morte, como Edgar Poe adorava chamar a poesia. É a mulher que se crucifixa, nessa França em que o catolicismo não soube fazer sua revolução protestante.

E você será então parecido com essa sujeira,
Com essa terrível infecção
Estrela dos meus olhos, sol da minha natureza,
Você, meu anjo e minha paixão!

Sim! Você será assim, o rainha das dádivas,
Após os últimos juramentos,
Quando você, sobre a grama e a farta florada,
For mofar entre os ossos.

Então, ó minha bela! Diga aos vermes –
Que vai comer com seus beijos –
Que eu guardei a forma e a essência divina
Dos meus amores decompostos!


Se Baudelaire tivesse lido John Donne, um católico convertido ao anglicanismo, sua vida teria um pouco mais de curiosidade filosófica. Na França, entende-se que depois de uma cerimônia fúnebre como essa, o cadáver dificilmente se levanta. Não esperavam mais nada além dos Bombeiros Fúnebres da Liberdade; estes, que vieram, in extremis, sob a forma de Antonin Artaud, aliás, necrófilo amador das fossas subterrâneas de O Monge, de Gregory Lewis, participando também, acredito, dos divertidos funerais dadaístas do Entr’acte, de Gregory Lewis de Marcel Carné e Fernand Picabia.
Eu não me deteria muito tempo em Artaud, contentando-me em propor a cova – a cova – fúnebre que não se cansou de separar as duas versões da encarnação, a americana e a européia. Artaud se tornou uma referência excepcional para o pensamento literário e filosófico contemporâneo. As diversas formas de interpretar sua batalha alcançaram níveis sofisticados de interpretação baseadas no “corpo sem órgão”, de Gilles Deleuze. Tratando-se desse assunto, poderia-se falar uma higienização, e até mesmo de uma liquidação dessas posições. Liquidação, é claro, no sentido usado por Deleuze, significando “fluxo”. Por outro lado, o que me surpreende na obra de Artaud, e que prefiro substituir no seu imenso projeto literário francês é o que me parece ter limpado a “carniça” baudelairiana. Ao ler sua última obra, a mais espetacular, Para acabar com o julgamento de Deus, nota-se que ele toma como ponto de partida a industrialização do corpo produzida pela América. Do corpo “whitmaniano”, sobretudo. A partir de uma informação da imprensa, ele defende um ataque ofensivo contra o produtivismo demográfico “yankee”.

Ontem eu aprendi
(deve-se acreditar que eu atraso, ou que talvez seja apenas um falso rumor, algumas dessas fofocas sujas que passam da pia para o esgoto na hora de limpar as vasilhas de uma refeição mais uma vez devorada)
ontem eu aprendi
uma das mais sensacionais atividades oficiais das escolas públicas americanas
e que sem dúvidas são responsáveis por fazer com que o pais se sinta encabeçando o progresso.
Parece que, entre os testes e as provas a que as crianças são submetidas assim que entram em uma escola pública, será privilegiada o que se conhece por prova seminal ou do esperma.
E que equivaleria a pedir a essa criança novata um pouco do seu esperma para introduzi-lo em um bocal
Mantendo-a então preparada para todas a tentativas de fecundação artificial que poderiam acontecer.
Porque, cada vez mais, os americanos acreditam que faltam-lhe braços e crianças, ou seja, operários
Soldados
E eles querem, a todo custo e por todos os meios possíveis, fazer e fabricar soldados
Para se prepararem todas as guerras planetárias que podem futuramente acontecer,
E assim demonstrariam com os méritos da força
A superioridade dos produtos americanos.



1 Traduzido por Marcela Vieira.
 

3 “Pois os átomos que me pertencem também são seus”. Procuramos nos inspirar o quanto possível da tradução proposta por Rodrigo Garcia Lopes (Folhas de Relva, São Paulo, Iluminuras, 2005). NdT.

4 Gênero poético descrevendo e elogiando o corpo ou parte do corpo de uma mulher.


___________________________________________________

- Auteur : Jacques Darras - Universidade de Picardie.
- Titre : Walt Whitman contra Antonin Artaud?
- Date de publication : 12-09-2011
- Publication : Revue Silène. Centre de recherches en littérature et poétique comparées de Paris Ouest-Nanterre-La Défense
- Adresse originale (URL) : http://www.revue-silene.comf/index.php?sp=comm&comm_id=67
- ISSN 2105-2816