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COLLOQUES


LE CORPS ET SES TRADUCTIONS / O CORPO E SUAS TRADUÇÕES
Complicado como um Tintoretto : Ana Cristina Cesar, o corpo e suas traduções

Michel Riaudel - Universidade de Poitiers, CRLA-Archivos.


1

Qualquer que seja a direção escolhida pela filosofia para orientar a questão da relação corpo/linguagem, ela conduz geralmente a uma dicotomia fundamental. O corpo “falaria” por movimentos ou sintomas; a linguagem só conteria o mundo na opacidade de suas dobras. Como sol e lua, um haveria de se ausentar no momento em que o outro sobe ao palco. Seja na afirmação platônica da incorporeidade do logos que faz do corpo uma carga e um peso, um invólucro enganador e um obstáculo à verdade3, seja na proclamação nietzscheana da antecedência do corpo em relação a todo o resto, inclusive à alma com que brinca e goza4, vemo-nos instalados numa cesura em que só nos resta imaginar passagens capazes de superá-la. Daí a idéia de que enunciar o corpo é necessariamente traduzi-lo, interpretá-lo. E se a língua ordinária não consegue dar conta dessa realidade, é preciso inventar uma língua dentro da língua. Embora ler ou escrever induza simetricamente o silêncio e uma forma de retração do mundo, a literatura beneficiaria-se, nessa perspectiva, de uma dupla virtude: por um lado, a lucidez da inadequação, que aponta zonas de impotência na “língua-do-dia-a-dia”, a consciência do que ela não sabe falar; por outro lado, a vontade de desfazer a clivagem que se dá não pelo afrontamento positivista (entre sujeito e objeto) mas pelos desvios da poética.
Eis um dos desafios lançados pela obra de Ana Cristina Cesar, ilustrado pelo período inglês e por escritos de seus 27-28 anos. Essa fase traz, entre outros, dois textos marcantes: o ensaio elaborado em 1980 (mas inédito até 1985, dois anos após sua morte), “Pensamentos sublimes sobre o ato de traduzir”, e o longo texto poético em prosa, Luvas de Pelica, também escrito en 1980 e publicado no ano seguinte, quando ela volta definitivamente ao Brasil. No ensaio misturam-se questões relativas à tradução e à intransitividade do corpo, a partir de um poema emblemático sob esse aspecto: o famoso “Going to bed” de John Donne, traduzido por Augusto de Campos, musicado por Péricles Cavalcanti e gravado (justamente em 1979) por Caetano Veloso. O próprio título do ensaio condensa a problemática, sugerindo duas faces da tradução, uma (ato) que garantiria a passagem da matéria, outra (pensamento) que a sublimaria: traduzir seria tanto transportar como alterar, abrindo a via para a transferência e o risco da traição.
Luvas de pelica, por sua vez, progride no ritmo dos embates do corpo, cuja verdade — às vezes negada — acaba se impondo, não sem elipse. O corpo doente, enauseado (“Eu só enjôo quando olho o mar5”), o corpo sublimado (“Esquece a paixão, meu bem6”), intocável (“Não pega mais o meu corpo”), o corpo doído, assediado pelo desejo (“O desejo é uma pontada de tarde7”), o corpo frágil da criança que exige proteção (“toma esse xarope, deita no meu colo8”), o corpo lacrimoso, rindo feito louco ou extático, o corpo inerte, enterrado, de KM, ou aquele desencarnado dos últimos versos de “So long”, de Walt Whitman9, ou mesmo o corpo desmaiado, no hospital, na “sala de ópio com Fats Waller cantando Two Sleepy People em câmera lenta10”… A primeira pessoa oscila entre imobilidade (“Fico quieta11”), catatonia (“Estou muito compenetrada no meu pânico12”), estado hipnótico e aceleração… Pelo menos em três circunstânciasa contenção não consegue se manter, a carne denuncia uma falação atrapalhada, a pulsão derruba os diques de uma falsa inocência, traída pelos desacertos da expressão:
[…] e eu tentando a séria com Mick pornográfico do lado, impossível. Aí eu disse adeus e desci com Mick e perdi o desenrolar dos acontecimentos, eles que são brancos que se entendam. A essa altura Mick havia se transfigurado, todo compenetração, acho que ele se excita é com surtos de mania. Fomos deitar na grama como dois pombinhos, o braço roça aqui, me recomponho, fazemos comentários sobre a natureza dos arbustos nesta região13.

E, de novo na presença de Mick:
Nesse ponto, me lembro agora, Mick entrou no quarto. A camisola estava pelo avesso. Lá estávamos outra vez com sociologias, ele muito oferecido na ponta da cama, até que me pus a passar baby oil nas mãos, lambança, e daí para os cabelos, e para os cabelos dele, beijos molhados que hoje dão maldade e gostinho de tortura14.

Enfim, dessa vez com Luke:
Pensando em você não é bem o termo. Você na minha pele, me ocorrendo sem querer, lembrança de perfume. Assim sentei lá fora ao sol. Luke veio de repente sem camisa e eu disse em português que susto. Ele entende e vem dar beijos mas conheço aquele meloso de propósito, paródia de meloso, e saio e volto e saio e bato a porta. Almocinho e um pouco de trabalho. Às 3 olho na janela e vejo logo quem lá embaixo de calção tomando sol. Desço e boto Gershwin e fico lendo o golpe na Bolívia no jornal. Dias em que ler jornal saca lágrimas e do fundo da cabeça figuras da galeria nacional, anjos suspensos no ar de cabeça para baixo, um deles ao peito de Vênus e em volta os outros olhando, flechando, rodopiando entre cortinados, lençóis desarrumados, pássaros, pavões, lagostas, aviões.
Logo logo vou de novo lá. Mas não quero esse salgado do meu lado. Fico só, com raiva do cachorro do vizinho. Não queremos falar nada, nem como vai nem o golpe na Bolívia. Estamos encostados pegando o sol que se inclina e eu dou uma volta completa para sair da sombra e é complicado como um Tintoretto. Minha cabeça encosta no pé dele e a cabeça dele no meu pé; minha mão alcança a perna dele e a mão dele a minha perna; graminhas, cobertores brancos nas graminhas, cores fortes de alta renascença. Não descrevo mais e minha mão passa enquanto a dele passa e abre o zíper e embaixo é difícil com blue jeans. Acho que eu queria sim esse salgado15. […]

De forma curiosa, nesse último trecho, no momento em que a relação entre as personagens assume um caráter mais físico e menos sublimado, a narração convoca discretamente, de modo quase clandestino, uma referência mediadora e, além disso, pictórica: A origem da Via láctea, de Tintoretto.

Tintoretto (1518-1594), A origem da Via láctea, óleo/tela, National Gallery, 148 x 165 cm.

O fato repete-se sistematicamente em Luvas de Pelica onde as intrusões da imagem são diversas, seja mencionando o desenho, as colagens, a fotografia, seja através das citações de um livro de Henri Michaux associando textos e pinturas, Émergences-résurgences16, das variadas allusões a Bia Wouk, a esposa de João Almino17… Ainda em relação a essa questão, lembremos que foi visitando uma exposição da amiga pintora, em Paris, 1980, que Ana Cristina Cesar escreveu um texto chamado “Un signal d’arrêt” (uma referência a H. Michaux). Esse mesmo texto reaparecerá, parcialmente, na sexta sequência Luvas de Pelica e será, mais tarde, integrado ao catálogo de outra exposição da artista brasileira, na cidade do México. Além disso, a capa da edição (“marginal”) original de 1981, concebida pela própria Ana Cristina Cesar, reproduzia um dos quadros de Bia Wouk, citado posteriormente no texto. Todas essas referências, porém, mantêm-se no círculo de relações da poetisa, ou na leitura de seus contemporâneos. A incrustação do quadro de Tintoretto é mais inesperada e instigante. Porque buscar uma obra aparentemente tão distante de seu universo e de sua geração? E porque neste momento exato do texto?
Observemos, en passant, que a inserção mal se distingue dos usos que ela faz da citação ou da tradução. Ao mesmo tempo em que transfere elementos de uma obra para outra, ela empenha-se em desfigurá-la. Sob esse aspecto, uma das funções do avião parece ser da mesma ordem que, por exemplo, a irrupção do “video-tape” na adaptação de Walt Whitman, poucas páginas acima: o anacronismo perturba a identificação, enquanto o gesto de reapropriação vampiriza sua fonte. O jogo de sedução, que consiste em mostrar escondendo, é claro: ela dispersa em seu texto indícios suficientes para atiçar um leitor atento e, ao mesmo tempo, apaga os rastros que permitiriam remontar ao original.
Esses índices, três no caso do trecho escolhido, disseminados em dois parágrafos, enquadram a descrição da tela. Porém só serão esclarecidos depois de relacionados: a National Gallery, “é complicado como um Tintoretto” e as “cores fortes de alta renascença”. A identificação dessas pistas perde seu poder de evidência uma vez que o valor do rastro se corrompeu: a tradução do nome do famoso museu londrino, ao invés de tornar legível oculta, cifra. A menção de Tintoretto, surprendente demais para escapar ao leitor, está no entanto relegada à condição de comparação. A caracterização das cores, finalmente, localiza-se longe do trecho ao qual poderia se aplicar com maior pertinência: a descrição apressada do quadro.
Na verdade, a presença da pintura de Tintoretto se dá em dois momentos: no primeiro parágrafo, as reminiscências do quadro, provavelmente reparado numa visita ao museu e suficientemente marcante para ficar na memória. É possível que a lembrança esteja também associada não somente ao quadro, mas a um acontecimento ligado à sua descoberta, a uma companhia… Num segundo momento, nota-se a sua reapropriação na evocação de uma cena contemporânea da ação, que imita e reproduz certos elementos do quadro, inscrevendo-o no “real” da ficção e fazendo-o mudar de ordem de “realidade”.
Detenhamo-nos agora na própria tela para tentar entender melhor o que pode ter chamado a atenção de Ana Cristina Cesar. Ela parece ter sido parte de um conjunto de quatro obras cuja realização atendeu a um pedido de Rodolfo II, no decorrer dos anos 158018, ou no começo da década seguinte19. Imperador do Santo Império de 1576 a 1612, Rodolfo II é filho e successor de Maximiliano II, e o neto de Carlos-Quinto. Admirador da vida e das mulheres, foi também um protetor das artes e das ciências, em particular dos astrônomos Tycho Brahé e Kepler, ou mesmo Arcimboldo… Fez de Praga, a partir dos anos 1580, uma brilhante capital cosmopolita e um centro de difusão do maneirismo nórdico. A encomenda feita a Tintoretto, pintor de Veneza já célebre na época, visava decorar as paredes do paço imperial: ancorando-se nas realidades terrestres e em certo hedonismo, as exigências impuseram temas profanos tingidos de erotismo. O veneziano fez de Hércules a personagem comum de suas quatro cenas mitológicas, inspiradas, ao que parece, por uma obra de Gregorio Giraldi, o Ercole, publicado em Modena em 1557.
A cena de nosso quadro evoca os primeiros dias do semi-deus. Zeus seduz Alcmena sob os traços de seu marido Anfitrião, nova infidelidade que exasperará Hera (Juno pelos romanos) quando descobre o fato. Ela fará tudo para eliminar Alcides, fruto desses amores extraconjugais e futuro Héracles. Alcmena, temendo as represálias da deusa, abandona o recém-nascido fora de Tebas, ficando somente com o gêmeo Íficles, filho legítimo de Anfitrião. Nesse ponto, as versões divergem20; a fonte provável de Tintoretto conta que Hermes traz a criança ao Olímpio para que seu pai, aproveitando o sono de Hera, o faça beber o leite divino. Quando a deusa, despertada pela boca ávida do bebê, percebe o ocorrido, rejeita-o violentemente, mas já é tarde. Transformado pelo líquido, o menino passará a se chamar Héracles, indicando o laço indefectível que o une à divindade: o leite fez de fato mais do que nutri-lo e garantir-lhe a vida, trouxe-lhe a eternidade. Por outro lado, o leite que jorrou do peito de Hera quando ela repeliu a criança deu origem a duas criações: a Via láctea no céu, a flor de lírio na terra. Apesar de Tintoretto ter tratado da dupla dimensão etiológica do mito, as exigências prosaicas do ajuste do quadro na parede fizeram desaparecer a parte inferior da tela, cortada pelos proprietários. Pode-se contudo reconstituir a obra original na íntegra graças a uma gravura que a reproduz em sua versão original. Vê-se aí, aos pés de Juno, uma mulher nua deitada numa “cama” de lírios, nascidos das gotas do leite derramado.
Essa erudição, longe dos propósitos de Ana Cristina Cesar, permite interpretar o que ela mesma projetou no quadro. Tendo em vista os elementos mencionados e seus avatares poéticos, podemos concluir que as motivações explícitas que sustentam a referência a Tintoretto em Luvas de Pelica são, grosso modo, de três ordens: a reunião heteróclita da “narração pictural”, o caráter “complicado” do movimento da cena, e seu valor erótico. Mas percebe-se também que esses três planos, facilmente distintos para efeitos de análise, são solidários, pertencem à mesma base, apontam na mesma direção: falar no corpo e de seus movimentos.
Se a arte do pintor pode ser qualificada de “complicada”, é em primeiro lugar devido ao labirinto de referências e de interpretações em que se desdobra. Estamos diante de um encaixe de citações tão ao gosto de Ana Cristina Cesar, de uma multiplicidade de fontes (antigas, renascentes…) e de códigos (fábula oral, transcrição escrita, pintura). Diante do esquecimento atual dos códigos mitológicos, porém, a poetisa faz a heterogeneidade do que está sendo representado refletir-se no seu texto. Reforçando esse brilho de muitos tons, ela vale-se de modo malicioso da enumeração e da parataxe: “[…] entre cortinados, lençóis desarrumados, pássaros, pavões, lagostas, aviões.” Tudo é justaposto e amontoado de forma incoerente, de modo que nenhuma lógica consegue dar conta do conjunto. É que a distância cultural dissociou a relação entre cada termo: a águia atribuída a Júpiter, os pavões a Juno… Os animais permitiam a identificação das personagens ao mesmo tempo em que compunham um cenário, contribuindo para a diversidade da tela. O espectador de hoje deve fazer um esforço de erudição para documentar os fios dessa história.
Além da profusão de personagens e detalhes, o sentimento de confusão provem dos movimentos que os animam, orientados em torno de três eixos: o plano terrestre, hoje em falta; o de Hera, flutuando em lençóis de nuvens e portanto intermediário entre a alcova e o céu; e o plano de Zeus. Tudo se movimenta, numa agitação causada pela relação entre as personagens, ou por motivos interiores. No caso de Hera, por exemplo, a representação pictórica insiste nos efeitos de desestabilização. O tronco ainda quase deitado e a perna direita já em pé indicam um corpo que se ergue. Ao mesmo tempo, um movimento de torsão segue do eixo paradoxal das pernas à cabeça, enquanto ela procura ver o que está lhe assediando. Finalmente, os braços abertos traduzem a surpresa. Caracteriza-se, assim, uma dupla “passagem”: a, física, de um deslocamento brusco e “complicado” no espaço; outra, psíquica, do estado de descanso, de despreocupação, à viva repulsão sob o choque de um repentino despertar da consciência. Os pavões, no segundo plano, perturbam ainda mais a cena pela postura hierática e ridiculamente “ausente” do drama. São dos raros seres quase imóveis da tela, embora o pavão da direita, olhar atraído para fora do quadro e cabeça voltada em direção contrária ao resto do corpo, parece indicar um fato novo, acontecido fora do campo de visão, que interessa também à águia.
A contrariedade mais evidente surge contudo dos ares, vinda do canto superior direito da tela, no eixo da luz e sob os traços de uma aventura deslumbrante, que desafia as leis da gravidade: Zeus segura Alcides nos braços, escoltado pela a ave imperial (simétrica aos pavões) e por uma suposta lagosta (para nós um enigma). Única personagem semi-vestida do quadro, em ampla peça de tecido flutuante vermelha e azul, o deus está auxiliado por quatro anjinhos, sugerindo outro sentido à cena. Esses putti, com os quais o texto de Ana Cristina Cesar parece confundir Hércules, estão de fato todos armados da frecha de Eros (exeto um) e de um dos quatro instrumentos da “ferida de amor”: o arco, a rede, as correntes e o fogo da tocha. Portanto a salvação da criança se reveste da aparência de um estupro.
Em suma, no plano da representação, o que Ana Cristina Cesar pode querer reter de Tintoretto e desse quadro especialmente, é o esforço para sair da perspectiva fixada pelo Quattrocento, ou mesmo do espaço euclidiano. O veneziano, assim como a brasileira, buscam uma certa elasticidade temporal na qual se concentram e se misturam as diversas etapas da cena: no quadro, a criança colocada no peito de Hera concomitante à reação da deusa. Juntam-se à compressão da temporalidade (que traduzem no texto os efeitos de sintaxe e elipse, os saltos do passado ao presente, a preferência pelos modos verbais atemporais) a torsão, o cruzamento das paralelas, a imbricação dos planos, os jogos de sombra e luz, contra a linha reta e o círculo, dominantes na arte do Renascimento. Eis, a esse respeito, o comentário de David Rosand, autor de um livro sobre a pintura veneziana no século XVI:
[…] o ataque mais forte de Tintoretto visava o próprio plano da representação […]. Esse ataque era por parte conduzido graças a atalhos violentos […]21.

O crítico acrescenta mais adiante que, nesse artista, a ordem do quadro:
parece burlar a lógica espacial da perspectiva convencional. Carregado de tamanha tensão, o plano da representação adquira, no final de contas, ainda mais peso na medida em que se torna o lugar de encontro das energias pictóricas em conflito22.

Tintoretto é, segundo os comentários, classificado como pintor do Renascimento, maneirista ou iniciador da pintura barroca23, discussão de poucas consequências para nós. O certo e mais interessante, no entanto, é o fato de que, em vários momentos de sua carreira, Tintoretto provocou reações de hostilidade, sinais de que suas ousadias artísticas suscitavam resistências e transgrediam as convenções da época. Maneirista, Ana Cristina Cesar o é por sua vez no modo de escrever “à maneira de…”, não cultivando a paródia ou o pastiche, mas cruzando e emaranhando as escritas e códigos de expressão. Como se a linguagem, sem abdicar de seus privilégios, sentisse então a necessidade de se desviar por outros códigos de representação para “figurar” o que ela mesma não considera capaz de restituir. Solicitar a imagem é sinalizar os limites da língua e tentar enriquecê-la pela representação visual. Ou como Ana Cristina Cesar sugere numa admirável fórmula: “falar não me tira da pauta, vou passar a desenhar; para sair da pauta24. A pauta, musical ou programática, é aquilo que guia e “enquadra”. São justamente esses limites, esses parâmetros, que devem ser abalados para que o discurso se revigore. Da mesma forma, a poetisa começou, nesse mesmo momento, na Inglaterra, a rabiscar um caderno de desenho25.
Não menos de que seu pintor modelo26, Ana Cristina Cesar reage às convenções da narração realista, insuficiente para dar conta da complexidade do real. As alusões irônicas sobre o tema são recorrentes em Luvas de pelica: “Você precisava de uma injeção de neo-realismo, na veia27.”; “Discutimos o veio masoquista com olho bem naturalista28”; e também “Opto pelo olhar estetizante29”. Além disso, a sequência que nos interessa encerra-se com uma possível alusão a outro quadro, até aí não identificado, e o seguinte comentário:
Perhaps he is trying to show you can do all the perspective wrong and the picture will still look all right30.

Trata-se portanto, para a poesia de Ana Cristina Cesar, de redefinir a mimesis. Não surprende, nessa lógica, o fato do desafio estar associado à expressão da sexualidade, um eros ainda por cima se manifestando pela violência, forçando as portas da vontade declarada, imã dos corpos contra a razão da linguagem. Daí as leituras “erradas” de Ana Cristina Cesar, que vê Hércules como mais um cupido e assimila Juno a Vênus. Exatamente por isso — para dar conta desses impulsos vitais, dessas pulsões, dessa energia envolvida de forma maciça pelo corpo, central e nu —, é preciso inventar outros regimes narrativos. Toda a cena diz respeito aos embates contra a consciência e o razoável: as reminiscências involuntárias de perfume, de figuras da National Gallery, as ações insensatas (“e saio e volto e saio e bato a porta”), os sentimentos incontrolados tal como essa raiva contra o cachorro do vizinho, as denegações que os acontecimentos por ventura venham a desmentir. A cada vez, a irrisória lucidez é contradita ou esquecida. Assim como no Renascimento, as representações de cenas profanas autorizavam e liberavam a potência erótica, a sintaxe trôpega, repetitiva, elíptica e veloz de Luvas de pelica visa captar o dinamismo frágil e descompassado das traduções do corpo.
Renascer na e pela língua, nela se refundar, passa pelo gaguejo, o grito, a língua desastrada, inábil, a imagem e a imaginação. Buscar uma mediação, no caso pela representação pictural, não significa portanto reconhecer sua impotência. Pelo contrário. É ter plena consciência da insuficiência da relação mimética, quando pretende ser apenas a cópia de uma exterioridade, como se existisse para os homens uma realidade fora da linguagem. O poeta conhece o caráter envolvente da língua, o que não significa o cancelamento do real ou a sua subordinação desse a qualquer clausura do texto. Seria possível dizer da linguagem e da poesia o que certa tradição filosófica relatada por Jean Starobinski dizia da imagem e da imaginação, justamente: uma seria o invólucro ou a “roupa”, o “primeiro corpo do pensamento”, a outra o “intérprete do corpo31”.
O que está sendo questionado e subvertido nesse trecho de Luvas de pelica (e em muitos outros), são justamente as clivagens: interioridade/exterioridade, visível/invisível, ser/parecer, superfície/profondeza… Redobrar o trabalho de representação, pela citação, a reprodução e a tradução (sendo ela uma citação que converte os códigos, ou em síntese um deslocamento dos significantes), não tem por efeito passar da cópia ao simulacro, mas sim nos livrar dos moldes rígidos da imitação, tornando sensíveis os reflexos da ilusão. Essa hipótese vê-se confirmada pelo epílogo do texto: o número de prestidigitação e o uso da luva. Corroborada também pela dramaticidade do pintor escolhido, semelhante a da escrita poética de Ana Cristina Cesar, sua expressividade, a arte de forçar o traço, a pose nos gestos. A expressividade não é a expressão, não implica nem fora, nem dentro, nenhuma restituição de um “sentir”. Baseia-se numa teoria do signo linguístico que não prevê a união de um significado e de um significante (deixando na porta o mundo dos referentes e suas realidades), mas o relacionamento de um significante et de um referente ao qual se liga e donde decorre algum significado.
Além disso, injetando algo da representação visual na palavra, esse trecho de Luvas de pelica acena para certas qualidades do ideograma, cuja origem figurativa faz dele, de modo paradoxal, semanticamente mais aberto que a transcrição alfabética, e talvez, acima de tudo, menos disjuntivo no seu modo de dizer o mundo. Assim o texto questiona a incorporeidade da língua e seus compartimentos impermeáveis, a partir da qual uma nova frente de intervenção para a poética de Ana Cristina Cesar é aberta: a introdução do terceiro (incluído), que vem perturbar o equilíbrio mais ou menos pacificado dos pares de noções, o corpo e a língua, a transparência e a opacidade, o ser e o não ser. François Jullien, num recente ensaio, designa como fundador do logos occidental o princípio aristotélico da não contradição que, ao mesmo tempo em que une discurso e conhecimento, expulsa a dimensão poética ainda presente no pensamento presocrático: “[…] o poético é o que não se deixa reduzir a dizer algo, a significar algo. Ou, se referindo precisamente ao lugar para o qual aponta Heráclito, a poesia seria dizer sem cindir: sob a desintegração operada de modo comum pela linguagem, se colocando como missão “romper por nós o hábito” ou apurar as palavras (entre Saint-John Perse e Mallarmé), ela restabelece conivências (resoâncias, correspondências…) e guarda o “todo” sólidario32.” Isto seria a condição para, de um lado, o texto advir: o “corpo-a-corpo” da escrita, isto é a apreensão do significante — de certa forma o corpo da linguagem. E de outro lado, a leitura, desfrutando do dispositivo proposto.
Nessa pintura dos corpos aqui analisada, nessa história de corpos que se arrumam, se desarrumam e se ajeitam, o que finalmente se passou? O que finalmente foi “repassado”? A escrita poética exige certa decifração, a que sacrificamos, mas ela é o oposto da fixação do sentido: experiência na qual o tempo escorre, se sente mais do que se mostra, ela excita as paixões. O real não se satisfaz em um “dizer”, não se comunica, ele é apenas visado num transe, numa transa, transação, movimentação. Luva de pele/pelica por natureza, o poema, tal como a imaginação, não se reduz a um racicínio abstrato, nem a uma sensação direta — às vezes apenas superfície, composta, que nos arrebata, stuff as dreams are made on, instauradora de reescrita.

1 Traduzido por Fernando Peixoto e Michel Riaudel.

3 Cf. Socrate em Fedão, 66b-67a, e também Marcile Ficin: a beleza é aliquid incorpoream.

4 “Mas o homem já desperto, o sabedor, diz: — “Eu sou todo corpo e nada além isso; e alma é somente uma palavra para alguma coisa no corpo.”, Friedrich Nietzsche, Assim falou Zaratustra, trad. Mário da Silva, Rio de Janeiro, Civilização brasileira, 2007, p. 60.

5 Ana Cristina Cesar, A teus pés, São Paulo, Brasiliense, 1982, p. 95.

6 Idem.

7 Idem.

8 Ibid., p. 96.

9 Ibid., p. 111. Ver nosso estudo “De l’amour en traduction. Sur une imitation des derniers vers de “So long” (Walt Whitman)”, in: Marie-Noëlle Ciccia, Ludovic Heyraud et Claude Maffre (org.), Traduction et Lusophonie. Trans-actions? Trans-missions? Trans-positions?, Montpellier: Presses universitaires de la Méditerranée (Université Paul-Valéry - Montpellier III), 2007, p. 441-467.

10 Ibid., p. 114.

11 Ibid., p. 95.

12 Ibid., p. 96.

13 Ibid., p. 103.

14 Ibid., p. 110.

15 Ibid., p. 112-113.

16 Henri Michaux, Émergences-résurgences, Genève, Skira, col. “Les Sentiers de la Création”, 1972.

17 Sobre esse ponto, cf. nossa análise, “De Bliss à Luvas de pelica: la métamorphose d’un conte”, in Revista da Anpoll, n. 5, São Paulo, 2° semestre de 1998. Os fragmentos de cartas publicados em Correspondência incompleta indicam que vários episódios das estadas parisienses da Ana Cristina Cesar dizem respeito à sua relação com o casal. É aliás uma foto de João Almino que ilustra a capa do livro: Ana Cristina Cesar, Correspondência incompleta, Rio de Janeiro, Aeroplano, São Paulo, Instituto Moreira Salles, 1999.

18 O site da National Gallery indica: cerca de 1575; mas a date leva a separar o quadro do resto da série herculeana. Pierluigi de Vecchi propõe a data de 1582, mais verossímil (ver Sylvie Béguin e Pierluigi De Vecchi, Tout l'œuvre peint de Tintoret, trad. Simone Darses (italiano), Paris, Flammarion, col. “Les classiques de l’art”, 1971).

19 Essa é a estimação de Terisio Pignatti, em: Francesco Valcanover & Terisio Pignatti, Tintoret, trad. Armand Montjo, éditions Cercle d’Art, col. “La bibliothèque des grands peintres”, 1985, p. 52-53. Ao contrário dele, Francesco Valcanover opta pelo final dos anos 1580 (ibid., p. 141).

20 Cf. Robert Graves, Les Mythes grecs, trad. Mounir Hafez, Paris, Fayard, 1967, p. 356-357.

21 David Rosand, Peindre à Venise au XVIe siècle. Titien, Véronèse, Tintoret, trad. Fabienne Pasquet e Daniel Arasse, Flammarion, col. “Idées et Recherches”, 1993, p. 193. A tradução em português, aqui e nas citações seguintes, é nossa.

22 Ibid., p. 196.

23 Terisio Pignatti evoca o “manierismo sensual dos anos 50” da obra de Tintoretto (cf. ibid., p. 52-53). Segundo R. Pallucchini (La giovinezza del Tintoretto, 1950, citado em Tout l'œuvre peint de Tintoret, ibid., p. 13-14): “o veneziano aceitou esse estilo [maneirista] sem reserva, impregnou-se dele profundamente, mas ao mesmo tempo reagiu: definiu assim sua própria personalidade ao mesmo tempo que imprimia a essa cultura um conteúdo moral e uma violência de sentimento até agora desconhecidos.” Para Sylvie Béguin, “Tintoretto é um maneirista. Porém seu ‘patos’, sua obsessão pelo movimento e a orquestração grandiosa de suas decorações já são os de um barroco.”, Tout l'œuvre peint de Tintoret, ibid., p. 8. Ela parece tirar as consequências das hesitações de A. Hauser (Der Manierismus, 1964, citado em Tout l'œuvre peint de Tintoret, ibid., p. 14): “a posição de Tintoretto na história do estilo é muito complexa pois, embora ele seja um maneirista de origem michelangelesca, não são os traços maneiristas de Michelangelo que mais o impressionaram. […] A verdadeira diferença entre o maneirismo de Michelangelo e o de Tintoretto reside em que um atravessa períodos maneiristas mais ou menos limitados, quando o outro é e se mantem um maneirista por natureza, apesar de certas flutuações e intermitências de seu direcionamento estilístico. Se o artista se apega constantemente a muitas das conquistas do Barroco, não demonstra ‘reservas’ quanto ao Maneirismo, pelo menos não as que geralmente se lhe atribuem.” Philippe Beaussant, por sua vez, apenas cita o barroco (Philippe Beaussant, Passages de la Renaissance au Baroque, Paris, Fayard, 2006, p. 15-35).

24 Ibid., p. 96.

25 Cf. a edição fac-similada: Ana Cristina Cesar, Portsmouth, 30-6-80, Colchester, 12-7-80, São Paulo, Duas Cidades - Ptyx, sem data [1993].

26 Segundo David Rosand, Tintoretto “[…] transcende as esperas de um puro e simples realismo.”, ibid., p. 196.

27 A teus pés, op. cit., p. 102.

28 Ibid., p. 106.

29 Ibid., p. 111.

30 Ibid., p. 114.

31 Jean Starobinski, “Jalons pour une histoire du concept d’imagination”, in L’Œil vivant II. La Relation critique, Paris, Gallimard, 1970, p. 184-185. J. Starobinsky cita parcialmente Robert Klein, “L’imagination comme vêtement de l’âme chez Marsile Ficin et Giordano Bruno”, in La Forme de l’intelligible, Paris, Gallimard, 1970, p. 65-88.

32 François Jullien, Si parler va sans dire, Paris, Seuil, 2006, p. 31.


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- Auteur : Michel Riaudel - Universidade de Poitiers, CRLA-Archivos.
- Titre : Complicado como um Tintoretto : Ana Cristina Cesar, o corpo e suas traduções
- Date de publication : 12-09-2011
- Publication : Revue Silène. Centre de recherches en littérature et poétique comparées de Paris Ouest-Nanterre-La Défense
- Adresse originale (URL) : http://www.revue-silene.comf/index.php?sp=comm&comm_id=68
- ISSN 2105-2816