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COLLOQUES


LE CORPS ET SES TRADUCTIONS / O CORPO E SUAS TRADUÇÕES
A ingenuidade de um perverso. Linguagem, infância e erotismo em Nabokov

Eliane Robert Moraes - Universidade de São Paulo.


Em Abril de 1947, Vladimir Nabokov envia uma carta ao amigo Edmund Wilson, na qual confidencia: “Estou escrevendo dois textos agora: 1. um pequeno romance sobre um homem que gostava de menininhas – que vai se chamar The Kingdon by the shore –, e 2. um novo tipo de autobiografia – um esforço científico de desenredar e reorganizar os fios emaranhados de uma personalidade – cujo possível título é The person in question2.” Lado a lado, o romance que viria a celebrizar o autor e sua igualmente famosa autobiografia – ambos publicados em meados da década de 1950 sob novos títulos – pareciam ser fruto de algum pacto secreto na mente de seu criador.
De fato, algumas convergências entre Lolita e Speak, Memory são evidentes, a começar pelo fato de que os protagonistas dos livros realizam, ambos, um intenso acerto de contas com o passado. Em que pesem todas as diferenças entre os dois personagens – acrescidas do fato de apenas um deles ser declaradamente ficcional3 –, tanto num caso como no outro o texto se organiza a partir de reminiscências, nas quais a infância tem um papel central, ainda que de formas bem distintas. Entre a singela criança que o escritor russo foi e a lasciva ninfeta por ele concebida, porém, há mais afinidades do que se pode perceber à primeira vista.
Uma possível chave para se abordar essa relação é sugerida pelo próprio autor, não por acaso precisamente no capítulo de Speak, Memory em que relata sua primeira paixão adolescente, vivida aos dezesseis anos de idade, ainda na mítica São Petersburgo. Transcorridas mais de três décadas, o escritor recorda os momentos mágicos partilhados com a menina Tamara, evocando o passado com grande ternura e sem qualquer tom de lamento. A nostalgia inaugura, portanto, um tempo forte na sua existência, como ele testemunha: “a ruptura em meu destino me propicia, em retrospecto, um prazer sincopado que eu não trocaria por nada desse mundo. Desde aquela troca de cartas com Tamara, a saudade é, para mim, uma atividade sensual e particular4”.
Assim concebidas, as reminiscências parecem resistir àquela carga afetiva que, sendo própria de tudo o que se perde de forma irremediável, costuma permanecer como um peso por vezes insuportável. Ao contrário, o olhar retrospectivo de Nabokov prefere valer-se “das lentes cuidadosamente limpas do tempo” para conjurar a dor das perdas, que o exílio por certo só fez ampliar. Sem deixar de registrar essa dor, nem tampouco o sentimento de tristeza suscitado pelas lembranças, o escritor consegue perceber também algum ganho, pessoal e literário, decorrente das sucessivas separações que lhe foram impostas. Ao revisitar aqueles “dias distantes cuja luz alongada teima em encontrar maneiras surpreendentes de chegar até onde me encontro5”, há sempre o esforço de presentificar a intensidade do passado, de tal forma que o presente ganha uma densidade insuspeitada, a matizar sua vocação para o efêmero.
A luz do pretérito nunca cede, nas rememorações do escritor russo, às imagens das trevas, nem tampouco às demais metáforas da morte com que se costuma “enterrar o passado”. Ao invés, ela teima em manter seu brilho nessas recordações, levando o autor a compor aquela imagem duradoura sem a qual nenhuma autobiografia consegue estabelecer um elo sensível entre passado e presente. Ora, importa aqui ressaltar que esse poder mental de dispor da experiência vivida para além dela mesma não distingue apenas as memórias de Nabokov, cabendo também para singularizar as tocantes confissões de Humbert Humbert.
Dizendo de outro modo: o que parece haver em comum entre a autobiografia e o romance é um intrincado jogo entre passado e presente, no qual adulto e criança podem, de diversas maneiras, intercambiar seus respectivos papéis. Aliás, é justamente esse jogo que, realizado na linguagem, permite aproximar a infância e o erotismo, seja na sutil conjugação entre a sensualidade e a saudade tal como exposta em Speak, Memory, seja no escandaloso casal que se forma diante do leitor de Lolita.
De momento vale assinalar que a matriz de uma linguagem a um só tempo infantil e sensual já se impõe desde as primeiras linhas do romance, na apaixonada evocação de Humbert Humbert que constitui uma das passagens mais delicadas da erótica literária: “Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. Lo-li-ta: a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes. Lo. Li. Ta. 6”. Passagem notável, sem dúvida, uma vez que apela para o ato pueril de soletrar um nome ao mesmo tempo em que desvela seu erotismo latente.
Sabemos que quem soletra aqui, saboreando a palavra na ponta da língua, não é uma criança e sim um homem maduro que, ao confessar sua perversão, representa mais que qualquer outro a antítese da infância. Porém, como Nabokov sempre nos convida a suspeitar das aparências, cumpre olhar também o perverso sob novas lentes.
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Embora o romance Lolita tenha se celebrizado por colocar em evidência a figura da ninfeta, não deixa de ser notável a complexidade com que elabora a imagem do perverso. Humbert Humbert é um personagem construído sobre paradoxos: se, de um lado, ele insiste em se definir como um pervertido, de outro, ele jamais corresponde à caricatura do tarado – ou, se preferirmos seu equivalente contemporâneo, do pedófilo –, sendo que tais estereótipos são colocados em xeque ao longo de todo o livro.
Tome-se, por exemplo, a escassez de referências corporais sobre o melancólico protagonista. Se a figura do pervertido costuma, no mais das vezes, ser reduzida aos irrefreáveis impulsos eróticos de seu corpo, no caso de Lolita o que ocorre é bem diverso. O texto chega a surpreender pela economia com que descreve as sensações físicas do personagem: o corpo aqui resta sempre como um fantasma que, vez por outra, emerge de seu silêncio para fazer uma aparição fugidia e, quase sempre, em situações pouco erotizadas. A rigor, nesse romance de forte apelo erótico, o corpo do pervertido é raramente sexualizado.
Prova disso encontra-se no final da primeira parte do livro, quando Humbert Humbert está prestes a entrar no quarto de hotel em que, pela primeira vez, dormirá lado a lado com Lolita. Ou, como ele prefere sintetizar, valendo-se de uma prosaica expressão francesa: “So this was le grand moment7”. Minutos antes de abrir a porta do aposento, e tomado por forte angústia, o personagem descreve suas sensações: “a tensão começava a se tornar mais intensa. Se uma corda de violino é capaz de sentir dor, então eu era essa corda”. Uma vez lá dentro, preparando-se para deitar ao lado de sua ninfeta, ele alude ao “corpo tenso à beira do abismo, como aquele alfaiate que há quarenta anos, com seu pára-quedas de fabricação caseira, pulou do alto da torre Eiffel”.8 Por fim, já na beirada da cama, paralisado diante de sua bela adormecida, Humbert é assaltado por uma forte azia: “um ataque de azia (grand Dieu, eles dizem por aqui que essas batatas são fritas à francesa!) vinha somar-se a meu desconforto9”.
Seria redundante citar as outras passagens em que nosso herói alude a tais incômodos, sem dúvida bem mais freqüentes que qualquer imagem de prazer corporal – estas quase sempre ocultas nas entrelinhas do romance. Contudo, talvez valha a pena remeter ainda a um outro momento em que ele se refere a sensações físicas desagradáveis, o qual permite estabelecer um paralelo entre sua condição de pervertido e sua situação de prisioneiro. Trata-se do menor capítulo do livro, que se reduz a um só parágrafo de sete linhas:

Preocupa-me a dor de cabeça diária no ar opaco dessa prisão tumular, mas tenho de perseverar. Escrevi mais de cem páginas e não cheguei ainda a lugar nenhum. As datas se confundem em minha memória. Isso deve ter acontecido por volta de 15 de agosto de 1947. Acho que não posso continuar. Coração, cabeça…tudo. Lolita, Lolita, Lolita, Lolita, Lolita, Lolita, Lolita, Lolita, Lolita. Tipógrafo, repita, por favor, até preencher toda página10.


De fato, o breve capítulo parece sintetizar a atmosfera de opressão em que vive Humbert Humbert, clima que se expande do corpo para todas as outras dimensões de sua pessoa, para consumi-lo de uma forma absoluta – “coração, cabeça,… tudo”. Passagem notável que demanda um pouco mais da nossa atenção.
“Escrevi mais de cem páginas e não cheguei a lugar nenhum” – vale dizer que nesse momento o leitor já está quase no meio do romance, o que sugere uma circularidade narrativa à qual corresponde também um sujeito parado, deslizando no mesmo lugar. Ou seja, embora se possa narrar a história de Lolita no tempo – o livro não deixa de ter um começo, meio e fim –, a perspectiva cronológica pouco interessa. No fundo, trata-se de uma história sem progressão: não se chega a lugar nenhum.
Daí que a referência temporal precisa (“15 de agosto de 1947”) pareça existir unicamente para ser contrastada – e até mesmo desmentida – por esse tempo circular em que tudo se repete. Daí também a insistência de Humbert no mote da repetição: “Lolita, Lolita, Lolita, Lolita…”, até o ponto de implorar a ajuda do tipógrafo: “por favor: repita até preencher a página inteira”. Vislumbra-se aí a mesma exigência de repisar um motivo, que de certa forma demanda exaustão, embora nunca se complete. Preenchida uma página inteira, sempre resta a seguinte – e assim sucessivamente.
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Vale a pena explorar uma hipótese: a prisão onde o narrador está recluso – essa prisão exterior representada pela cadeia – oferece uma imagem potente da sua prisão interior. Nela, como sabemos, tudo se repete. Nela, o personagem se encontra sempre no mesmo lugar, como que paralisado. Vale lembrar que o pervertido de Lolita, longe de ser a pessoa que se abandona livremente à transgressão, é por definição um homem preso. Diferentemente dos libertinos de Sade – que gozam de toda liberdade nos seus corpos ostensivamente sexualizados –, Humbert Humbert é um sujeito confinado, de corpo e alma, “cabeça, coração… tudo”.
Que prisão é essa que retém o personagem de Nabokov no mesmo lugar físico e mental?
Uma possível resposta seria: é a infância. Com efeito, como já observou Silviano Santiago, o pedófilo se caracteriza por ser aquele que jamais esquece a própria infância – que dela não se liberta – e nesse sentido o protagonista do livro é exemplar11. Aliás, em uma das suas diversas digressões sobre o passado, Humbert confessa que “talvez jamais teria existido uma Lolita se, em certo verão, eu não houvesse amado uma menina primordial12”. Fixado nos jogos amorosos infantis, ele segue vida afora em busca do objeto de amor perdido na infância: sua adorada Annabel Leigh, que morre ainda criança. Já adulto, ele procura obstinadamente as reproduções desse “original” que ficou no passado – quer dizer, quando conhece Lolita, na verdade ele a reconhece. Ou, como ele testemunha: “Era a mesma criança – os mesmos ombros frágeis cor de mel, as mesmas costas flexíveis, nuas e sedosas, os mesmos cabelos castanhos”, para concluir que “os vinte e cinco anos que vivi desde então reduziram-se a um ponto latejante, e se desvaneceram13”.
Fixação na infância que, por certo, se evidencia na própria concepção de ninfeta – e mais ainda na ninfeta que morre, uma vez que a garota morta não envelhece, permanecendo eternamente criança14. Trata-se, pois, de um sujeito que não supera o estado primeiro e primitivo de inocência e torna-se, em definitivo, prisioneiro de seu imaginário infantil. É, portanto, a partir dessa chave que podemos compreender melhor a inesperada frase com que Humbert Humbert se define, ainda no início do livro: “de minha parte, eu era tão ingênuo como só um pervertido pode ser15”.
Inesperada porque a associação do perverso ao ingênuo vem aproximá-lo novamente da infância. Afinal, por ser um o sujeito que não pôde atualizar o tempo, ele permanece preso a um tempo original que o retém de corpo e alma. Por tal razão, ao criar um personagem com tais características, Nabokov realiza uma notável torção de sentidos, invertendo os significados convencionais: a rigor, a criança da história não é a ninfeta, mas sim o perverso.
Desnecessário recordar que, para reforçar tal hipótese, é Lolita quem seduz o frágil Humbert que, no grand moment, aparece abatido pelo temor, pelas dores e pela azia. Desnecessário lembrar ainda o espanto do perverso ao tomar conhecimento das atividades nada castas levadas a termo no rancho de seu concorrente Clare Quilty – como revelam suas próprias palavras: “Eu simplesmente não podia imaginar (eu, Humbert, não podia imaginar!) as coisas que eles faziam no Duk Duk ranch16.” Ele, Humbert, o ingênuo, a criança da história…
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O confinamento na infância faz de Humbert um prisioneiro antes mesmo de sua reclusão na cadeia. Mais que simples hipótese, essa idéia ganha um sentido profundo e particular quando evocamos a desconcertante imagem que, segundo Nabokov, está na origem de seu romance:
“Senti a primeira palpitação de Lolita em Paris, em fins de 1939 ou começo de 1940, quando estava acamado com uma séria crise de nevralgia intercostal. Tanto quanto me recordo, o frêmito inicial de inspiração foi de alguma forma provocado por certo artigo de imprensa sobre um macaco no Jardin des Plantes, o qual, após ser persuadido durante meses por um cientista, enfim produziu o primeiro desenho feito por um animal: nele só apareciam as grades da jaula da pobre criatura. Esse impulso não tinha nenhuma conexão textual com a linha de   pensamento por ele suscitada, da qual resultou, entretanto, o protótipo de Lolita17”.
Curioso notar que, ao confinamento do próprio autor – retido na cama por conta de uma forte nevralgia – acrescenta-se o confinamento radical do macaco na jaula, ambos reclusos num mesmo lugar. No caso do animal, a situação é radicalizada, configurando a imagem mais categórica de uma prisão: na jaula, onde quer que olhe, ele vê sempre a mesma coisa: as grades que o cercam. Reclusão absoluta do corpo que limita sua percepção, levando-o a desenhar tão somente a gaiola que o encerra.
Assim, o testemunho de Nabokov aproxima em definitivo o personagem Humbert Humbert do macaco do Jardin des Plantes, tenha ele existido ou não, corroborando a hipótese de que o homem preso é um duplo do homem aprisionado por suas fantasias infantis18. De fato, não é difícil associar o sujeito que escreve suas memórias no cárcere ao animal que desenha as grades da sua própria jaula.
Porém, como a prisão do perverso não se reduz a um espaço exterior, tal como acontece com o macaco, para explorar suas dimensões interiores o autor é obrigado a lançar mão de recursos menos previsíveis e pouco convencionais. Com efeito, para traduzir o estado físico e mental de seu personagem, Nabokov se vale de uma liberdade lingüística impar, como se não bastasse uma só língua para realizar tal tarefa. A começar pelo fato de ser esse um livro escrito em inglês por autor russo, e publicado originalmente na França. Ou então pelo abundante número de citações francesas do texto. Ou, mais ainda, pela capacidade do escritor em ampliar tais possibilidades. Leia-se, por exemplo, esta curiosa passagem do romance: “Apertei a campainha, que fez vibrar cada um de meus nervos. Personne. Je resonne. Repersonne. De que profundezas brotava aquela rebobagem? 19”.
Jogando o tempo todo com o duplo da língua, o escritor expande seus limites e alarga suas fronteiras para enfim revelar suas dimensões mais fantasmáticas. O fato de seu herói chamar-se Humbert Humbert só vem corroborar essa idéia, já que o próprio nome é passível de desdobramentos fonéticos, evocando tanto o hombre espanhol quanto a ombre francesa – para compor um personagem que é a um só tempo o homem e sua sombra. Valendo-se desse claro-escuro, Nabokov consegue criar uma língua erótica que deixa o sexo em suspenso, bem de acordo com as convicções de seu pervertido, que afirma “não estar nem um pouco preocupado com o que se possa chamar de ‘sexo’20”.
Trata-se, pois, de uma língua outra que já não é mais o inglês. Vale notar, nesse sentido, que os estudiosos da obra são unânimes em observar que o inglês americano do autor não deixa de denunciar sua condição de estrangeiro, não obstante todos se surpreenderem com seu domínio do idioma. Para Nabokov, porém, trata-se de “um inglês de segunda categoria, desprovido de todos os acessórios – o espelho de truques, o pano de fundo de veludo preto, as tradições e associações implícitas – de que o ilusionista local, com as abas do fraque a voar, pode valer-se magicamente a fim de transcender tudo o que lhe chega como herança21”.
A verdade é que Lolita nos coloca diante de uma língua sincrética, artificial, imaginária. Uma vez desobrigado das convenções que o “ilusionista local” deve obedecer, o escritor se serve dessa língua como se tivesse em mãos um brinquedo e, tal qual uma criança, ele a explora à vontade para traduzir vivências eróticas arcaicas, descobertas quando as primeiras palavras perfuraram o silêncio da infância22.
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Infância, sexo, linguagem – é tão difícil associar a saga do perverso Humbert Humbert à vida do menino Vladimir Nabokov quanto desconhecer os paralelos que se traçam nas entrelinhas de Lolita e de Speak, Memory. À diferença ostensiva que separa os dois personagens se contrapõe um certo pano de fundo que, embora longínquo e obscuro, permite uma aproximação entre os dois textos.
Assim é que alguns intérpretes relacionam a obsessão do protagonista do romance pelas ninfetas a um breve episódio narrado no sétimo capítulo da autobiografia, dedicado às férias da aristocrática família russa em Biarritz23. Não por acaso, a passagem se inicia aludindo à “parte mais escura e mais úmida da plage, a parte onde na maré baixa se encontra a areia molhada que mais se presta à construção de castelos24”. É nesse cenário opaco, movediço e predisposto à fantasia que o escritor conhece, aos dez anos de idade, uma menina chamada Colette.
Essa foi, para nos valermos da expressão de Humbert, a “menina primordial” do garoto Vladimir, posto que o encontro ocorreu em 1909, seis anos antes da paixão adolescente por Tamara. Chama atenção, no relato do episódio infantil, a declarada opacidade das lembranças – efeito raro num autor cuja memória sempre “cintila de nitidez” –, em contraposição às precisas descrições de sensações físicas e detalhes corporais. Os olhos esverdeados, as sardas, os cachos castanhos, o pulso fino, o machucado no antebraço, o pescoço frágil, as pernas compridas, a pele tensa, as cócegas no ouvido, o beijo no rosto – um detalhamento típico de Nabokov, é verdade, mas aqui envolto na espessa névoa do passado, enfatizada quando a garota “desaparece em meio às sombras” da paisagem, deixando-o “preso àquela mecha de iridescência, sem saber ao certo onde encaixá-la25”.
Ora, não é digno de nota que o primeiro título imaginado para Lolita tenha sido justamente The Kingdon by the shore? E também que o episódio de Humbert Humbert com Annabel Leigh tenha ocorrido igualmente numa praia – a mítica Riviera onde as duas crianças descobrem as primeiras sensações do amor? E ainda que a expressão “a kingdon by the shore” – traduzida na versão brasileira como “um principado à beira mar” – seja recorrente no romance? Por fim: não seria plausível supor que a ficção oferece ao escritor um lugar onde essa memória difusa, e essencialmente corporal, pode enfim encontrar seu “encaixe”?
Menos que apontar um fundo autobiográfico no romance – o que teria pouco interesse num escritor para quem “a imaginação é uma forma de memória” –, importa aqui reafirmar que a escrita do autor de Ada opera com uma linguagem própria cuja matriz é a um só tempo infantil e sensual. Ora, justamente por ter origem no limbo da infância, mas estar sempre condenada à tradução de um adulto – seja o perverso ou o escritor –, essa linguagem não pode ser outra senão a de um tecido de reminiscências.
Trabalho de texto sobre o tempo, como se lê tanto em Lolita quanto em Speak, memory. Ou, se quisermos, apelo da escrita à deusa Mnemósine, ela também presente em ambos os livros. Vale lembrar que Nabokov planejava dar o título de Speak, Mnemosyne à edição inglesa da sua autobiografia, mas declinou da idéia por acreditar que “as velhinhas não teriam desejo de comprar um volume cujo título não conseguiam pronunciar26”. Mesmo assim, a invocação da memória vai persistir no título definitivo.
De forma semelhante, Humbert rende homenagem à deusa grega ao evocá-la como “a mais doce, a mais brincalhona das musas!”. Valendo-se dessa chave, o personagem conclui a evocação com a lembrança de um antigo ensaio de sua autoria cuja tese central, sobre a origem da memória, é bastante curiosa. Trata-se, segundo sua descrição em tom de zombaria, de um “audacioso vôo intelectual” no qual esboçava uma “teoria sobre a percepção do tempo que se baseava na circulação do sangue e dependia conceitualmente (para resumir o troço) de que a mente tivesse consciência não apenas da matéria, mas da sua própria existência27”.
Brincadeira significativa, a confirmar a hipótese de que corpo e linguagem podem se tornar elementos indissociáveis, e mais ainda quando o texto trabalha com a matéria-prima da infância. Mas é precisamente aí, onde se percebe a maior afinidade entre os dois narradores, que se impõe também sua distinção capital: enquanto um se empenha em “desenredar e reorganizar os fios emaranhados de uma personalidade”, o outro se enreda cada vez mais na trama desses espessos fios que, em certo sentido, reforçam sua condição de prisioneiro.
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Narradores distintos, distintas formas de narrar as respectivas memórias. Se a convergência mais imediata entre os dois livros está no fato de que seus protagonistas realizam um acerto de contas com o passado, uma leitura mais atenta logo revela que cada qual o faz do modo que melhor lhe convém. Ou seja, ainda que ambos pratiquem o gênero autobiográfico, criador e criatura não pactuam as mesmas opções formais.
Lolita é uma confissão. Aliás, não sem ironia, o livro é assim apresentado já na primeira linha do suposto prefácio assinado por um Dr. John Ray Jr.: Lolita - A confissão de um viúvo de cor branca28. Como tal, o relato de Humbert se vincula a uma antiga tradição literária do Ocidente cujos paradigmas foram dados pelas Confissões de Santo Agostinho e confirmados mais tarde pelo livro homônimo de Jean-Jacques Rousseau. Nesses textos exemplares, a linguagem assume dupla função, servindo como forma de organização da experiência rememorada mas também como meio de expiação dos erros do passado.
Agostinho deu origem a um modo de falar sobre o sujeito que até hoje permanece como um dos gêneros mais freqüentes da literatura moderna, fornecendo um modelo que passou a vigorar tanto em autobiografias quanto em romances confessionais29. Talvez a herança mais importante de suas confissões tenha sido a percepção de que uma consciência que se perscruta não pode prescindir da linguagem para redimir as suas faltas, o que veio a estabelecer uma relação intensa entre narração, memória e reparação moral.
Ainda que o faça com o habitual sarcasmo, o protagonista de Lolita se mantém fiel a tais convenções, contando sua história de acordo com esse modelo. É porém digno de nota que, na contramão do perverso, o autor de Speak, Memory se proponha a narrar suas memórias sem qualquer concessão ao paradigma tradicional. Não afirma ele, na carta a Edmund Wilson, que está escrevendo “um novo tipo de autobiografia”? E não diz ainda que isso exige “um esforço científico” de sua parte, como que recusando as formas de escrita tornadas “naturais” pela tradição?
A autobiografia de Nabokov em nada se aproxima de uma confissão: nenhum erro a reparar, nenhuma falta a expiar, nenhum pecado a demandar arrependimento. Ao invés disso, no intento de investigar a constituição de sua personalidade, o escritor se propõe a reordenar a experiência vivida na infância e na adolescência, estabelecendo elos entre o passado e o presente, entre o tempo da narrativa e aquele da narração. São esses encadeamentos que ele visa a capturar, na tentativa de compor um retrato sensível da “pessoa em questão”. Vale lembrar que The person in question foi o título original cogitado pelo autor, embora a primeira edição americana do livro, de 1951, tenha sido lançada sob o título Conclusive Evidence – o que remetia, segundo suas palavras, às “evidências conclusivas de minha passagem pelo mundo30”.
Assim, se em Lolita a linguagem sempre traduz a falta – no duplo sentido de ausência e de erro –, em Speak, Memory ela se impõe sobretudo como princípio de presença, ostentando sem reservas seu poder de presentificação. Basta comparar o descaso com o corpo do personagem do romance, a reiterar o motivo da falta, com a abundância de das vivências físicas rememoradas pelo sujeito da autobiografia, com tal intensidade que até a saudade se transforma em experiência sensual. No limite, é a memória do corpo que fornece a esse último a evidência conclusiva de sua existência.
Já nas confissões de Humbert, o brilho da evidência parece dar lugar a um opaco rastro daquilo que foi vivido e resiste à representação. Em certo sentido, vale para Lolita o mesmo que Marguerite Yourcenar afirma a respeito dos poemas eróticos de Kavafis, de forte tom memorial, uma vez que também no romance, o jogo das reticências e dos resguardos literários “parece indicar, num terreno que permeneceu seco, a altura até a qual as águas subiram outrora31”. Se tal aproximação for mesmo pertinente, é possível interpretar a escassez de referências corporais de Humbert como uma estratégia textual que vem confirmar a filiação do livro ao gênero confessional.
Assim sendo, ao calar a memória do corpo, o relato do perverso termina por justificar sua visada autobiográfica. Condenadas a se manter no pretérito, as principais marcas de sua passagem no mundo não são passíveis de atualização no presente, conformando-se à mera condição de rastro. Ou seja, se comparado à altura que as águas alcançaram no tempo da narrativa, o momento da narração só pode ser imaginado como um terreno seco, onde o frescor do erotismo cede lugar à arquitetura da reparação. Daí que o modelo confessional sirva tão bem a Humbert pois, excedendo o intento de organizar a experiência vivida, ele se valida como meio de redimir os danos do passado.
Essa chave nos convida a reler as últimas e tocantes frases do romance que, tal qual um testamento, expõem o derradeiro desejo de seu narrador. Sem lamentar o assassinato do rival, Humbert conclui a confissão em termos categóricos, dirigindo-se à Lolita: “era desejável que H. H. existisse pelo menos alguns meses a mais a fim de que você pudesse viver para sempre nas mentes das futuras gerações. Estou pensando em bisões extintos e anjos, no mistério dos pigmentos duradouros, nos sonetos proféticos, no refúgio da arte. Porque essa é a única imortalidade que você e eu podemos partilhar, minha Lolita32”.
Com essas palavras, Nabokov realiza uma última reviravolta de sentido, instaurando uma temporalidade mítica na narrativa. Mais que simples salto do passado para o futuro, a passagem final remete a um tempo outro, além e aquém de qualquer duração, que apela à eternidade da arte, enfatizando sua função reparadora. O rastro do vivido não mais se confunde com a marca d’água, deixando de indicar apenas o tamanho da falta, para revelar-se na qualidade de “pigmento duradouro”, artefato misterioso que mantém vivas as criações de mundos arcaicos e desconhecidos.
Redenção pela arte, nada estranha ao leitor que tiver acompanhado a história com atenção e percebido que as tonalidades eróticas da primeira parte tendem a se apagar gradualmente na segunda. Não por acaso, nessa virada modifica-se também o tom do relato, que passa de crônica de uma perversão a uma autêntica história de amor. Afinal, o “sexo nada mais é que subsídio da arte33”, como pontua Humbert ao reiterar seu desejo de traduzir a erótica por meio da estética, aproximando em definitivo o romance da autobiografia. De fato, não parece ser outro o intento de Nabokov em Lolita: se ele condena o corpo do pervertido ao silêncio das entrelinhas, é por certo para melhor realizar a perversão no corpo da própria língua.
 

2 Brian Boyd, “Introduction”, in Vladimir Nabokov, Speak, Memory – An autobiography revisited, New York: Alfred A. Knopf, 1999, p. ix. Optamos por manter, nas referências a esse livro, seu título definitivo em inglês, embora as citações remetam à tradução brasileira, realizada por Sergio Flaksman e intitulada A pessoa em questão – Uma autobiografia revisitada (São Paulo, Companhia das Letras, 1994).

3 Não se deve esquecer que, além de seu estilo fortemente poético, vários capítulos de Speak, Memory foram primeiro apresentados como textos ficcionais e não autobiográficos, o que reforça o caráter híbrido do livro. Sobre esse vaivém entre ficção e memórias em Nabokov, consultar o ensaio de Maurice Couturier, Nabokov ou la tyrannie de l’auteur, Paris, Seuil, col. “Poétique”, 1993, especialmente p. 357-367.

4 Vladimir Nabokov, A pessoa em questão – Uma autobiografia revisitada, op. cit., p. 224.

5 Ibid., p. 104.

6 Vladimir Nabokov, Lolita, trad. Jorio Dauster, São Paulo, Companhia das Letras, 1994, p. 13.

7 Ibid., p. 140.

8 Ibid., p. 145.

9 Ibid., p. 147.

10 Ibid., p. 125.

11 Conforme Silviano Santiago, “O pequeno demônio de Nabokov”, in caderno “Mais!”, São Paulo, Folha de S. Paulo, 18 de Abril de 1999.

12 Lolita, op. cit., p. 13.

13 Ibid., p. 47.

14 Figura recorrente no romance, a menina morta é evocada na Annabel Leigh de Humbert Humbert que, por sua vez, faz menção à Annabel Lee do poema de Edgar Alan Poe e também à sua jovem esposa Virginia Clem. Mortas em tenra idade, todas elas oferecem o paradigma de Lolita, que desaparece tão nova quanto suas inspiradoras.

15 Lolita, op. cit., p. 31.

16 Ibid., p. 312.

17 Ibid., p. 349.

18 O tema do duplo é central em Nabokov, como fica evidente já no nome do protagonista de Lolita, Humbert Humbert, e também na figura de seu concorrente Clare Quilty – nome que joga com os termos “claro” e “culpado” (guilty, em inglês), designando um personagem muitas vezes identificado à penumbra e à sombra, outra derivação do duplo. Remeto, nesse sentido aos livros de Michael Wood (The magician’s doubts – Nabokov and the risks of fiction, Princeton, Princeton University Press, 1995) e Jean Coutourier (Lolita, Paris, Autrement, col. “Figures Mythiques”, 1998) que abordam o tema de forma rigorosa.

19 Lolita, op. cit., p. 304.

20 Ibid., p. 152.

21 Ibid., p. 356.

22 Vale aqui uma menção a Walter Benjamin, que associa o brinquedo à atividade sonhadora que possibilita às crianças “recuperar o contato com um mundo primitivo” (In Obras escolhidas, trad. Sergio Paulo Rouanet, São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 252-253. Cf., em particular, “História cultural do brinquedo” e “Brinquedo e brincadeira”). Segundo o filósofo, o ato de brincar comporta uma “obscura compulsão da repetição” que “não é menos violenta nem menos astuta na brincadeira que no sexo”. Assim também, Benjamin reconhece que o “fetichismo da boneca” pode animar tanto os devaneios da criança quanto as fantasias do fetichista (Walter Benjamin, “Elogio da boneca”, in Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação, trad. Marcus Vinicius Mazzari, São Paulo, Summus, 1984, p. 98). Percebe-se, nessa relação entre a brincadeira infantil e a erótica, um princípio semelhante ao que orienta a atividade lúdica do escritor, aproximando-o de seu personagem perverso.

23 Veja-se nesse caso a excelente introdução de Brian Boyd, op. cit., e também aquela de Alfred Appel, do mesmo quilate, a Vladimir Nabokov, The annotated Lolita, New York, Vintage Books, 1991.

24 Vladimir Nabokov, A pessoa em questão…, op. cit., p. 132.

25 Ibid., p. 135 (grifos nossos).

26 Ibid., p. 10-11.

27 Lolita, op. cit., p. 294.

28 Alfred Appel lembra que a expressão “viúvo de cor branca” remete aos registros de casos psiquiátricos da época, enquanto o título completo parodia o romance confessional libertino de John Cleland, Memoirs of a woman of pleasure, de 1749. Nunca é demais recordar também que a confissão de Humbert não tem por objeto o crime pelo qual ele foi acusado, o assassinato de Clare Quilty, mas sim seu relacionamento com Lolita.

29 Ver, nesse sentido, Pete Axthelm, The modern confessional novel, New Haven, Yale University Press, 1967.

30 Conforme Brian Boyd, op. cit., p. xxiv.

31 Marguerite Yourcenar, “Apresentação crítica de Konstatinos Kavafis”, in Notas à margem do tempo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1988, p. 163.

32 Nabokov, A pessoa em questão…, op. cit., p. 348.

33 “Sex is but the ancilla of art” – confidencia o herói de Lolita, op. cit., p. 293, traduzido com infelicidade na edição brasileira como “a sexualidade não passa de uma expressão subsidiária da arte”.


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- Auteur : Eliane Robert Moraes - Universidade de São Paulo.
- Titre : A ingenuidade de um perverso. Linguagem, infância e erotismo em Nabokov
- Date de publication : 12-09-2011
- Publication : Revue Silène. Centre de recherches en littérature et poétique comparées de Paris Ouest-Nanterre-La Défense
- Adresse originale (URL) : http://www.revue-silene.comf/index.php?sp=comm&comm_id=71
- ISSN 2105-2816