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COLLOQUES


LE CORPS ET SES TRADUCTIONS / O CORPO E SUAS TRADUÇÕES
A tradução brasileira dos Escritos de Jacques Lacan: de uma libra de carne

Inês Oseki-Dépré -Universidade de Provence. Tradutora de: Jacques Lacan, Escritos, São Paulo, Editora Perspectiva, 1978.


I. Introdução

Em sua comunicação intitulada “Qu’est-ce qu’une traduction ‘relevante’?2” pronunciada em Arles em 1998, Jacques Derrida comenta a peça de Shakespeare, The Merchant of Venice, para introduzir a definição da palavra “re-elevante”. Jacques Derrida, para quem traduzir é “essa tarefa sublime e impossível”, caracterizada pelo “dever e a divida insolváveis do tradutor”, toma certas precauções diante dos 400 tradutores presentes antes de se lançar numa tradução. Antes disso, ele acrescenta que os tradutores são “os únicos a saberem ler e escrever” e as atividades de falar, ensinar, escrever não têm sentido a seu ver senão “na prova da tradução.”
A idéia do corpo aparece duas vezes em seu texto. A palavra só adquire interesse para ele enquanto “o corpo de sua singularidade idiomática”. A tradução de qualquer modo, faz surgir o outro, “o corpo original do outro”. A idéia do “corpo verbal” o autoriza em seguida a se deter na palavra contida em seu titulo, “re-elevante”, “corpo de tradução em vias de importação na língua francesa”. “No começo da tradução, acrescenta, existe a palavra”, da qual já Cícero no século I liberta a tradução de sua obrigação. Ao verbum, Cícero prefere o sensum, “basta o transporte da idéia, da figura, da força.”
Essas afirmações cicerônicas aparecem mais tarde com um tradutólogo como J.-R. Ladmiral e suas noções de “valor diferencial”, “inteligibilidade a flor do texto”, condição primordial para a “legibilidade”, em suma a “quodidade tradutiva3”. Em outras palavras, para Ladmiral e tantos outros, “é necessário que o sentido “apareça” custe o que custar4.” Derrida retorna todavia à tradução dita re-elevante.

Se ela desejar atingir à sua maior relevância possível, não é uma tradução que traduz as letras ou mesmo somente o que chamamos tranqüilamente de sentido, mas que, traduzindo o sentido dito próprio de uma palavra, seu sentido literal, isto é determinável e não figural, se dá por lei ou ideal, mesmo se inaccessível, o traduzir não palavra a palavra, seguramente, mas palavra por palavra, mas de permanecer porém tão perto quanto possível da equivalência de “uma palavra por uma palavra” e portanto respeitar a quantidade verbal como quantidade de palavras das quais cada uma é um corpo indivisível, a unidade infragmentável de uma forma e de um corpo indivisível, a unidade infragmentável de uma forma sonora incorporando ou significando a unidade infragmentável de um sentido ou de um conceito5.


Em suma, uma tradução que, nem por ser literal, se aproximaria disso o máximo possível. A segunda parte de sua exposição introduz, ainda a respeito de “re-elevante”, um paralelo com Shylock, a personagem do Merchant of Venice. Derrida gostaria, diz ele, de “introduzir (sua palavra) no mercado” na espera de “um reconhecimento de divida”. The Merchant dá ocasião a Derrida de justificar ao mesmo tempo a introdução da palavra “re-elevante6” na língua francesa e construir uma metáfora sobre a tradução pois trata-se nesse caso 1) de um engajamento, 2) de uma dívida; 3) do pagamento dessa dívida (que será anulada?); 4) da impossibilidade da tradução literal, da libra de carne (que corresponde a uma quantia de dinheiro mas cuja correspondência é impossível assim como é impossível a relação entre literalidade singular e a arbitrariedade do signo e 5) sua conversão em sentido. Lembrêmo-nos de que Shylock é enganado por Portia (disfarçada de advogada), que ele é impelido a “perdoar” sua dívida para salvar a vida de um homem e que esse perdão acarreta na anulação de sua dívida, na perda de seus bens e na sua conversão ao cristianismo.

II. Auto-comentário da minha tradução brasileira dos Escritos

Isso nos conduz à segunda parte de minha exposição, um auto-comentário da minha tradução brasileira dos Escritos, de Jacques Lacan7. Enunciarei aqui as duas grandes dificuldades dessa tarefa sublime.
(a) Primeira dificuldade: o objeto dos Escritos, a psicanálise.

Ao definir a psicanálise em sua relação com a lingüística, Benveniste aponta para uma das principais dificuldades com as quais se deparam pesquisadores e tradutores da psicanálise : a proximidade entre a linguagem-objeto, a metalinguagem (da qual Lacan diz “não existir”…) e o procedimento lingüístico que corresponde ao traduzir. É óbvio, o objeto da psicanálise enquanto ciência é o inconsciente, que não é o objeto da lingüística. Mas esse objeto só pode se apreender pela linguagem, e mais ainda, pela fala individual. O que Benveniste confirma:
A psicanálise parece distinguir-se de qualquer outra disciplina. Principalmente neste ponto : o analista opera sobre o que o sujeito lhe diz. Ele o considera nos discursos que este último lhe endereça, ele o examina em seu comportamento locutório, “fabulador”, e a través desse discurso se configura para ele lentamente um outro discurso que ele terá a responsabilidade de explicitar, o do complexo enterrado (soterrado) no inconsciente. Da vinda à luz desse complexo depende o sucesso da cura, que testemunha por sua vez que a indução estava correta. Assim do paciente ao analista e do analista ao paciente, todo o processo se opera por intermédio da linguagem.

Na verdade, o caráter simbólico é comum às duas linguagens, a língua dita comum e a língua dita do inconsciente. A diferença reside no fato de que a primeira é adquirida pelo homem, que ela é “co-extensiva à aquisição que o homem tem do mundo e da inteligência, com os quais ele acaba se unificando…, enquanto que no segundo caso, o simbolismo oferece caráteres absolutamente específicos e diferentes”. Os símbolos não “são nem aprendidos nem reconhecidos como tais por aqueles que os produzem. Além disso, a relação entre os símbolos e o que eles relacionam pode se definir pela riqueza dos significantes e a unicidade do significado, sendo unidos por uma relação de motivação.”

E na história na qual o sujeito se coloca, o analista provocará a emergência de uma outra historia, que explicará a sua motivação. Ele tomará portanto o discurso como intérprete de uma outra “linguagem”, com suas regras, seus símbolos e sua ‘sintaxe” próprias, e que remete às estruturas próprias do psiquismo8.


Poderíamos deduzir que se trata de procedimentos estilísticos do discurso, o inconsciente empregando uma verdadeira “retórica” com “figuras” (eufemismo, alusão, antífrase, preterição, litotes). A natureza do conteúdo mostrara todas as variedades da metáfora relacionadas com a metonímia, a sinédoque, e sua sintaxe evoca a elipse, procedimentos que podemos ver no mito, no sonho, nas lendas, adágios, provérbios, jogos de palavras, etc.
Essa dificuldade aumenta, segundo Ladmiral, tradutor de Erich Fromm, pelo fato de que a tradução da psicanálise não se resume a uma simples transcodagem e por várias razões das quais a primeira é que se trata de uma ciência que engloba uma grande diversidade de registros: teoria da energia, biologia, neurologia, psicologia, mitologia, linguagem institucional. “Segue toda uma profusão de conotações que não caberia ao tradutor arbitrar. O discurso científico da psicanálise tem em comum com o discurso poético que convém de nele integrar a conotação à denotação quando se decide traduzir9.” A essas dificuldades se acrescenta a presença de uma língua “terceira” que permanece o leitmotiv do texto da psicanálise, ou seja, o texto de Freud, as referencias quase sempre em alemão, o que incita Ladmiral a dizer que “a psicanálise fala alemão”, como, depois de Heidegger, a filosofia fala grego. Para Lacan:

O privilégio dado à letra de Freud nada tem de supersticioso para nós. É nesse ponto que estamos à vontade com ela a ponto de chegar a uma espécie de sacralização bastante compatível com o rebaixamento para uso de rotina. Que todo texto, quer ele se proponha como sagrado ou profano, vê a literalidade aumentar em prevalência do que ele implica propriamente de confrontação com a verdade, é sobre o que a descoberta freudiana mostra a razão de sua estrutura. Precisamente nisso que a verdade que ela transporta, a do inconsciente, deve à letra da linguagem, ao que chamamos de significante. Isso, se deixar por acaso transparecer a qualidade de escritor de Freud, é sobretudo decisivo ao interessar a psicanálise tão longe quanto pode a linguagem, como ao que ele determina no sujeito10.


Desse modo dois tipos de problemas aparecem com a tradução do texto lacaniano; o primeiro, que poderíamos chamar de estilístico no sentido definido por Granger (estilo = trabalho, forma e conteúdo), o segundo, científico ou epistemológico (tradução dos conceitos remanejados e renovados na medida em que a psicanálise é apesar de tudo uma prática muito antiga). Uma terceira dificuldade aparece na tradução de Lacan nas línguas como o japonês (a interculturalidade).
(b) A segunda dificuldade, Lacan e a letra.

Ao chegarmos psicanálise como a define Jacques Lacan, as questões se complicam de maneira incomparável nisso que ele usa, para “traduzir” Freud, uma metalinguagem (ou uma linguagem) heterogênea incluindo noções de lingüística, uma vez considerada a homologia entre os dois objetos linguagem humana e linguagem do inconsciente. Lembremos sua célebre formula: “O inconsciente é estruturado como uma linguagem11.”
O texto de Lacan coloca inúmeros problemas. Em primeiro lugar lingüísticos, na medida em que o psicanalista figura pela escrita, seu estilo, como costumava dizer, o “conteúdo” de sua mensagem. A formula de Mc Lucan, medium is message, nunca foi tão verdadeira. A importância do significante, da letra, do “como” dizê-lo transparece em cada frase do mestre. Lacan mostra pela sua linguagem o que ele exprime como novo em relação à psicanálise freudiana. Mais do que de estilo poderíamos falar de uma encenação, de uma enformaçao do inconsciente numa linguagem que deve comentar e ilustrar a linguagem desse inconsciente.
Em outras palavras, o tradutor se vê diante da escolha (a escolha do tradutor) de privilegiar ou o discurso sobre a linguagem do inconsciente ou a linguagem do discurso de Lacan cujo objetivo é conduzir o leitor através dos meandros de uma forma freqüentemente barroca (no sentido retórico do termo) à verdade de Freud. Ele deve evitar que sua escolha fixe um nível, privilegie uma linguagem mais do que outra. Pois o texto, recamado de jogos de palavras, metáforas, neologismo, palavras-valises (???), não é a ilustração de um discurso teórico como o são as imagens de um livro de ciências naturais para as ilustrações. O texto de Lacan não contém redundâncias.
Outra característica sua, em relação à forma, é que ele faz parte desse tipo de textos imersos na tradução e que oferecem a possibilidade “impossível” de encontrar um equivalente em outra língua já que em francês eles inauguram um novo espaço conceitual, eles abrem uma nova pista na linguagem. Além de que, nesse texto inteiramente dialógico, encontra-se, o que confirma as afirmações de Ladmiral – sem falar dos diferentes registros, das referencias a saberes distintos (jurídicos, médicos, filosóficos), citações em língua estrangeira –, uma língua cheia de imagens intraduzíveis, que procuram no “fala-se” (ou “isso fala”, ça parle) ou nos subentendidos culturais, exemplos, ilustrações a seus temas, para as quais a nota do tradutor (a N.T.), “vergonha do tradutor”, é indispensável.
Poderíamos tentar apresentar uma tipologia:
  1. a tradução do significado acarreta na perda da informação significante: “la lettre, l’être et l’autre12”; “J’ouis/jouis”…(ouço/gozo)…

  2. a tradução do significante polissêmico impõe a escolha de um significado entre outros: “trouver”: em francês encontrar, pensar (achar que), mas também “trobaire” (fazer trovas); “poulets”: policiais (na gíria), bilhetes de amor, jovens galináceos; “le vol de la lettre”: vôo, roubo mas a letra do alfabeto, do significante, da carta…
  3. os neologismos: “autruiche”, “autruicherie” (aveztroutro, avestroutrapaça)…
  4. as alusões a lugares comuns, provérbios, adágios, piadas de gosto nacional”: “les mois sans ‘r’” (meses sem a letra ‘r’, “comme un cheveu dans la soupe” (sem mais nem menos), “la vache qui rit” (marca de queijo), “il pleut comme vache qui pisse” (chove a cântaros).

Não que não existam palavras para traduzir ou vacas brasileiras, mas elas perdem a significação em português. A “vaca que ri”, que ilustra a “mise en abyme”, a verdade dentro da verdade, pode ser traduzido mas sem o queijo. No nível da frase, deparamo-nos diante de uma trama apertada, por vezes inextricável:
Mas a escova kantiana ela mesma precisa de seu álcali.

É preciso que haja nesse signo um noli me tangere bem particular para que, tal como o torpedo socrático, sua posse amoleça nosso homem a ponto de faze-lo cair no que nele se trai sem equívoco como inação13.


Ainda no nível sintático, é comum encontrar inversões e períodos proustianamente longos tais como, por exemplo: “O Outro é portanto o lugar onde se constitui o eu que fala com quem o ouve, o que um diz sendo já a resposta e o outro decidindo ouvir se um falou ou não14” e ocorreu-me procurar durante muito tempo o sujeito, não o seu – o sujeito que deve advir no lugar do inconsciente, do “ça” (“se”), – mas o sujeito gramatical de seu período e constatar que ele simplesmente não constava na frase. “Contentando-nos de um passo na sua gramática: lá onde foi-se… que significa isso? Se não fosse que “se” que tivesse estado (no aoristo), como chegar exatamente lá para ali me fazer ser, de enunciá-lo neste instante?15”. Os períodos são não apenas longos, mas gongóricos.
Em suma, a leitura de Freud deve ser feita na letra, de maneira literal, pois o que o pensamento de Freud sugere, assim como o de Lacan, o que se verá em seguida, é que o inconsciente se manifesta no e pelo significante. O discurso do paciente (e do analista), matéria prima, deve ser ouvido em seu aspecto significante mas contrariamente à poesia, não se trata de estabelecer uma correspondência entre significado e significante. Lembremos que Lacan inverte a fórmula de Saussure porque o significante pode recobrir uma série de signos, (cf. Benveniste), recobrindo um único significado.
(c) A tradução dos Escritos

Das considerações acima, podemos inferir a necessidade de uma tradução literal, seja ela “re-elevante”, ao contrario da teoremática geral utilizada por Ladmiral. Remeto à definição proposta por Derrida e a Walter Benjamin na “Tarefa do tradutor” (in Mythe et violence).
É mister não confundir aqui “estranheza” e exotismo na tradução. É preciso recordar que todo texto poético forte (mesmo em prosa, como em Guimarães Rosa ou em Thomas Bernhard) é um texto estrangeiro em sua língua. Não exótico. A tradução literal acaba atingindo, quando bem sucedida, três objetivos:
  1. partindo da estranheza da palavra, obter a equivalência na língua de chegada;
  2. partindo da estrutura da língua estrangeira, permitir ao tradutor de “decolar” (“colando”) para sua própria escrita;
  3. obter um efeito de estranheza próximo do texto original (em termos práticos, a distancia entre a língua “comum” e a língua “poética”).

Eu poderia caracterizar assim minha tradução como “klossowskiana”. Empresto seu prefacio da tradução da Eneida, substituindo “latina” por “lacaniana”, “poema” por “texto” e Virgilio por Lacan:
O aspecto deslocado da sintaxe, próprio não somente à prosa mas à prosódia latina (lacaniana), sendo admitido, não saberíamos tratá-lo como um arbitrário confuso, reajustável conforme nossa lógica gramatical, na tradução de um poema em que é precisamente a juxtaposição voluntária das palavras (cujo choque produz a riqueza sonora e o prestigio da imagem) que constitui a fisionomia de cada verso.

Mais adiante:
É por isso que quisemos, antes de mais nada, nos forçar à textura do original; sugerir o jogo de palavras virgilianos; conduzir o leitor a andar passo a passo com o poema; interrompê-lo até, para obrigá-lo a perceber um detalhe, e, de maneira mais geral, fazê-lo sentir, se fosse possível, o traçado do conjunto através de nosso frágil andaime…

III. A inacessível libra de carne.
Há outro problema que gostaria de evocar aqui e ele tem relação com a segunda dificuldade da tradução do texto lacaniano. Esta se situa, evidentemente, no nível lingüístico e epistemológico. O próprio Lacan, ao me propor traduzi-lo, estava consciente de que minha missão consistia em instaurar, introduzir uma ciência em língua estrangeira. O que equivale a dizer que além de criar um discurso teórico ao mesmo tempo muito próximo do discurso original, encontrei-me diante da necessidade de inovar lá onde há o novo, de se distinguir dos velhos discursos existentes na disciplina ou disciplinas que ele utiliza, visto que a psicanálise inclui, como o vimos, outras disciplinas.
Assim, levando em conta certas observações feitas anteriormente, que mostram o que, bem ou mal, realizei em português, resta evocar um aspecto fundamental da teoria lacaniana em relação ao qual a tradução se manifestou das mais duvidosas. Para tal utilizo o excelente trabalho de Michel Arrivé, Langage et Psychanalyse, Linguistique et Inconscient16, a formulação do problema que compreende, em primeiro lugar, a difícil questão pronominal, em segundo lugar, a questão da forma expletiva francesa “ne” após certos verbos, ambas associadas por Lacan à enunciação.
Explicitando a influência exercida por Damourette e Pichon na obra de Jacques Lacan, Michel Arrivé observa que é “l’empersonnement que o interessa de maneira decisiva, mesmo se – ao recordar os textos de cabeça como ele costuma fazer – ocorre-lhe batizar ‘personnaison’ (as pessoas ‘eu’ e ‘tu’ da enunciação) o ‘empersonnement’ (o sistema pronominal direto) 17”.
Ora, numa frase aparentemente simples: “Eu só fui isso para tornar-me o que posso ser”, o tradutor tem o direito de se perguntar, em primeiro lugar, se é o caso de distinguir o primeiro e o segundo eu, em segundo lugar a que eles correspondem. Trata-se do sujeito da enunciação? “Para Lacan não”, continua Arrivé: “este último, mero shifter, só o designa sem significá-lo18”. Deparâmo-nos com o problema da referencia e da significação do pronome. Quanto ao primeiro ponto, a referência, o lingüista e o psicanalista estão de acordo: trata-se precisamente do ser que diz “eu”. Mas quanto à significação? Arrivé lembra que para o lingüista Milner “o sentido de eu, é o pronunciamento do significante eu19” com o que Lacan, enquanto psicanalista, não concorda. O sujeito que interessa Lacan, diz Arrivé, é “o de uma outra enunciação, a do sujeito do inconsciente. E ele não se confunde com o eu tal como é proferido pelo sujeito falante.”

Evoco indiretamente […] a maneira justa de responder à questão: Quem fala quando se trata do sujeito do inconsciente? Pois esta resposta não poderia provir dele, posto que ele não sabe o que ele diz, nem tampouco que ele fala, como a experiência da análise nos ensina20.


Seria útil lembrar aqui que o sujeito do inconsciente não é aquele que pensa, como no cogito de Descartes. Lacan o retoma dizendo : Penso, logo não existo. Em poucas palavras, o “eu” que pensa, o “eu” gramatical é o “ego” ( “moi”), o que se fixa no imaginário, o que acredita ser (existir em português).
Michel Arrivé acrescenta que a contribuição de Damourette e Pichon para aí pois quando Lacan tenta utilizar a oposição dos gramáticos entre “sujet ténu” e “sujet étoffé”, o “ego” (“moi”), ele é obrigado a admitir que esta última o decepciona por não lhe permitir apreender o “ego” (“moi”) no seu acabamento. “Este último, prossegue Arrivé, se articula como metonímia de sua significação”, isto é, deslocamento de significante em significante na cadeia que ele constitui no caminho da subjetivação pelo significante sem que seja atravessada a barra que separa esse caminho daquele do significado21”.
O segundo ponto crítico no qual depara o tradutor, relacionado com essa mesma questão da enunciação, diz respeito ao expletivo francês “ne”. Michel Arrivé lembra-nos que se trata de um dos aspectos do francês que retém o interesse de Lacan da maneira mais tenaz. O psicanalista retém a pertinência da noção de discordância para dar conta do “ne”. Onde se situa a discordância, entre quais objetos? Nem entre “fatos” nem entre duas “idéias” mas entre enunciação e enunciado:
Já observei, no caminho de Pichon, o uso tão sutilmente diferenciado na língua francesa deste ne discordancial do qual mostrei-lhes o que o faz surgir de maneira paradoxal quando, por exemplo, o sujeito enuncia seu receio.

Temo (“je crains”) não, como a lógica parece indicar, que ele venha – é isso que o sujeito quer dizer, mas temo que ele … venha (“je crains qu’il ne vienne”). Esse ne tem um lugar flutuante entre os dois níveis do grafo do qual eu lhes ensinei o uso para encontrar a distinção, o da enunciação e o do enunciado. Enunciando temo … alguma coisa, faço aparecer em sua existência e ao mesmo tempo em sua existência de desejo – que ele venha? É aí que introduz este pequeno ne, que mostra a discordância da enunciação ao enunciado22.


No seminário VII, Lacan compara o “NE” discordancial do francês ao grego e chega a assimilar “a discordância entre a enunciação e o enunciado à Spaltung entre enunciação e enunciado”. Michel Arrivé se pergunta qual sentido atribuir a essa discordância fora a distinção habitual confirmada por Borillo (1976), Milner (1978) e Culioli (1990). Mas em todo o caso, há a distinção do sujeito da enunciação e do sujeito do enunciado. Pierre sabe se Paul partiu e a impossibilidade de “Sei se Paul partiu”. Não há portanto discordância (“persistência de um ao lado do outro sem influência recíproca”), mas distinção.
Lacan atribui ao enunciado o sentido habitual: “discurso concreto de quem fala e se faz ouvir, (…) esse discurso que podemos gravar num disco” (Seminário V). Deste modo, prossegue Arrrivé, “ é do lado da enunciação que se pode procurar as diferenças”. O próprio Lacan dá uma explicação nos Escritos:

Em “temo que ele venha” (“je crains qu’il ne vienne”), a infância da arte analítica sabe sentir nessa fórmula o desejo constituinte da ambivalência própria ao inconsciente […] O sujeito desse desejo é designado pelo Eu do discurso? Claro que não! Visto que este último é só o sujeito do enunciado, o qual só articula o receio e seu objeto. Eu sendo aí evidentemente o index da presença que o enuncia hic et nunc, ou seja em lugar de shifter. O sujeito da enunciação enquanto surge seu desejo não está em outro lugar senão nesse ne, cujo valor deve ser identificado com rápida lógica – assim chamaremos a função à qual se fixa seu emprego em “antes que ele venha”23.


Assim, compreendemos que o eu do discurso designa o enunciado, o que encontramos no “empersonnement”. “Quanto ao da enunciação, prossegue Arrivé, longe de ser significado pelo eu, ele não será notado em nenhum outro lugar senão no ne, que é portanto a marca de seu aparecimento no nível do enunciado24”. Trata-se de um sujeito bem específico: ele o é na medida em que “surge seu desejo”, “Sujeito do desejo”, que encontra o “desejo do sujeito “ atestado em Damourette e Pichon na análise do discordancial. O ne (ne vienne), antecipando o tempo do enunciado, corresponde à discordância entre este último e o tempo da enunciação.
Evidentemente, e encontramos a afirmação de Benveniste, para interpretar uma negação desse tipo: é preciso saber que o ausente poderia estar presente. Pois essa identificação entre sujeito da enunciação e sujeito do desejo não é evidente. Para Lacan, o sujeito da enunciação é apenas a “conseqüência” da articulação significante : não “agente”, mas simples “suporte”. ‘Notamos”, conclui Arrivé, “que a enunciação acaba se confundido com o encadeamento dos significantes”. A enunciação lacaniana não é senão aquela que encadeia “numa outra platéia” (“cena”), esses significantes específicos que constituem o inconsciente. “ A partícula negativa ne só vem à tona a partir do momento em que eu falo verdadeiramente e não no momento em que sou falado, se eu permaneço no nível do inconsciente25”.
Não prosseguiremos mais a exegese do texto lacaniano do qual acabamos de examinar dois pontos fundamentais de sua doutrina. A teoria do sujeito e o sujeito do desejo. Sabemos que a finalidade da cura segundo ele é a famosa formula de Freud : “là où ça était je dois advenir” (“lá onde se estava, eu devo acontecer”), trata-se desse sujeito. Vejamos agora os problemas da tradução:
Ao examinarmos o Vocabulário da Psicanálise, de Laplanche et Pontalis, certificado pelos psicanalistas lacanianos, não encontramos a rubrica “eu” (o sujeito “ténu”, tênue), mas para
  1. “moi” (o sujeito “étoffé”, pleno):

Alemão: Ich, Inglês: ego, Espanhol: yo, Italiano: io, Português: ego, com as variantes:
  1. “moi idéal”:

al.: Idealiche, ing.: ideal ego, esp.: yo ideal; ita.: io ideale, p.: ego ideal
  1. “moi-plaisir” – “moi réalité”:

al.: Lust-Ich – Real-Iche, ing.: pleaure-ego – reality-ego; esp.: yo-placer – yo realidad; it.: io-piacere – io-realtà; p.: ego-prazer – ego-realidade.

Observamos que em português a forma utilizada é a latina, como em inglês. A explicação provém de que o português possui para o “empersonnement”, a série seguinte:
  1. eu
  2. tu
  3. você (= tu), ele, ela
  4. nós
  5. vós
  6. vocês (= vós), eles, elas,


ou seja, a metade do sistema pronominal francês, com a particularidade de que a pessoa tu, do interlocutor é representada por “tu” ou “você”, reminiscência de “vossa mercê”, com o verbo na terceira pessoa.
Na língua comum, a tradução de uma frase do tipo: “j’aime le fromage” é “(eu) gosto de queijo”, com a presença facultativa do pronome visto que o verbo já indica a pessoa enquanto que a frase: “moi, j’aime le fromage”, pode ser traduzida por “eu, eu gosto de queijo”, ou “EU gosto de queijo”, isto é, uma enfatização pelo redobro escrito ou oral ou pela acentuação enfática oral.
O que coloca o problema da tradução do sistema de “empersonnement” , ou melhor de “personnaison” utilizado por Lacan, que distingue, apesar de Laplanche e Pontalis:
Je (sujeito da enunciação) – o eu (o verdadeiro sujeito/ sujeito do desejo);
Moi (sujeito recheado) – o eu imaginário

Condenando absolutamente o uso da terminologia clássica latina (id, ego, superego), o que não coincide com o Vocabulário.
O problema nesse caso é a impossibilidade de se criar um neologismo visto estarmos no interior de um sistema “discordante” (paralelo). A resposta de Lacan mostrava sua ignorância do problema quando me sugeriu traduzir “le moi” por “o eu”. Que fazer então do “le je”?… O Eu com maiúscula? O que teria interditado qualquer intervenção oral. Por exemplo, “ce suis-je”, da época de Villon, transformado em “c’est moi”, dá em português “isso sou eu”, transformado em “é eu26”, ficando claro que em português se diz “sou eu”. Outro exemplo: “C’est donc toujours dans le rapport du moi du sujet au je de son discours, qu’il vous faut comprendre le sens du discours pour désaliéner le sujet27”. Tradução: “É portanto sempre na relação do Ego do sujeito ao eu de seu discurso que lhes é preciso compreender o sentido do discurso para desalienar o sujeito28. O problema é que mais adiante vai se falar de Ego, Id, Superego, que não aparecerão na tradução, falsa homonímia.
Como diria Michel Arrivé, “com o risco de parecer divagar”, não pude resolver esse problema. A revisão psicanalítica brasileira tomou a decisão de conservar a terminologia do Vocabulário: eu/o eu; ego/o ego… o que equivale a destruir toda a formulação da teoria lacaniana da enunciação (talvez não toda a própria teoria). No que diz respeito ao “ne”, um outro problema se colocou, o português ignorando a nuance entre “je crains qu’il vienne” e “je crains qu’il NE vienne”. A tradução só podendo ser: “receio (temo) que venha” com ausência do sujeito do enunciado (o shifter) e ausência (inexistência) da partícula negativa. Na versão brasileira, o exemplo permanece em francês. Que acontece então com o sujeito do desejo em português?
Antes de concluir, ou melhor, para concluir, gostaria de evocar um outro tipo de impossibilidade a traduzir o texto de Lacan29 dessa vez em japonês. O tradutor explica a dificuldade de traduzir “o outro” e “o Outro”. Em japonês, segundo Sasaki, existem duas palavras : Ta-nin, que significa aquele que não é o sujeito e Miu-chi, aquele que não sou (é) eu.
Ora, se traduzimos “o outro” por Tanin, os Japoneses o traduzem por Miuchi, posto que ambos designam “alguém que não é (sou) eu”. Não existe termo para “o Outro”, neutro ou objetivo. A pessoa que não é eu pode ser de duas espécies: o Miuchi, as pessoas que conhecemos, de que gostamos, com quem estamos relacionados e o Tanin, a pessoa que não conhecemos, aquela com quem não temos nenhum relacionamento.
A solução foi de inventar um neologismo, Ta-sha, uma palavra jovem, de um século de idade e que indica uma coisa que não é nem Ta-nin nem Miu-chi. O problema é que, visto que não é nem um nem outro, o leitor japonês que nunca o encontrou (nem no referente nem no signo), só tem disso uma percepção abstrata e por conseguinte subsiste o perigo de que ele termine por assimilá-lo a um ou outro signo cujo conteúdo lhe é familiar30.
Ladmiral teria incluído o texto de Lacan no que ele chama de “tradução negativa”, ou seja, a tradução à qual se renuncia (como a de Adorno para ele) no que ela necessita da criação de um contexto muito vasto para sua legibilidade. A tradutora, mais literalista, mais obstinada, tentou o impossível. Como diz Derrida, “a tradução é ao mesmo tempo impossível e necessária”. Espero ter feito não uma tradução “re-elevante” posto que a carne se perdeu, mais de ter feito da minha tradução uma tradução “Aufhebung” sem poder dizer que renunciei completamente à letra para salvar o sentido que, nesse caso, era inseparável do corpo.

 

2 Jacques Derrida, “Qu’est-ce qu’une traduction ‘relevante’ ?”, in Quinzièmes assises de la traduction littéraires (Arles, 1998), Arles, Actes Sud, 1999, p. 21-48. Propomos para a tradução de “relevante”, o neologismo re-elevante.

3 Jean-René Ladmiral, Traduire : théorèmes pour la traduction, Paris, Payot, col. ”Petite Bibliothèque”, 1979, p. 17 et sq.

4 Ibid., p. 220.

5 Ibid., p. 28.

6“Relever” vem a significar dar mais gosto ao gosto; “relever” remete à elevação, portanto ao perdão; “relever”significa ao mesmo tempo elevação e substituição que conserva o que ele destrói, de onde “re-elevância”, que Derrida utilisa para traduzir Aufhebung, em Hegel. O verbo seria portanto re-elevar, segundo nossa sugestão.

7 Émile Benveniste, “Remarques sur la fonction du langage dans la découverte freudienne”, in Problèmes de linguistique générale, Paris, Gallimard, 1966, p. 82 (tradução nossa).

8 Ibid., p. 86.

9 J.-R. Ladmiral, op. cit., p. 251.

10 Jacques Lacan, “D’un dessein”, Le Seuil, p. 345, citado por Thève e This, tradutores de La Verneinung, Paris, Le Coq-Héron, 1975.

11 Segundo Michel Arrivé, o inconsciente em Lacan fala francês. Ver Langage et psychanalyse. Le linguiste et l’inconscient: Freud, Saussure, Pichon, Lacan, Limoges, Lambert-Lucas, 2005.

12 Tradução brasileira: a letra, o onto e o ponto (sugestão de Haroldo de Campos).

13 Jacques Lacan, “Le Séminaire sur ‘La lettre volée’”, Écrits, Paris, Le Seuil, 1966, p. 32.

14 Jacques Lacan, “La chose freudienne”, ibid., p. 431.

15 Jacques Lacan, “Subversion du sujet et dialectique du désir”, ibid., p. 801.

16 Op. cit.

17 Ibid., p. 145 et sq.

18 J. Lacan, Écrits, op. cit., p. 800.

19 Jean-Claude Milner, L’amour de la langue, Paris, Le Seuil, 1978, p. 78.

20 Lacan, citado por Arrivé, op. cit., p. 162.

21 Ibid., p. 163.

22 Jacques Lacan, Le Séminaire VII, L’Éthique de la Psychanalyse, Paris, Le Seuil, p. 70, citado por Arrivé, op. cit., p. 167.

23 J. Lacan, Écrits, op. cit., p. 664; o texto é o mesmo da “Nota sobre o relatório de Daniel Lagache”, que data de 1960.

24 Arrivé, op. cit., p. 169.

25 Lacan, Le Séminaire V, Paris, Le Seuil, p. 79 (citado por Arrivé).

26 Écrits, op. cit., p. 146

27 Ibid., p. 304.

28 In L’Âne, n. 4, Fev.-Mar. de l982, p. 168.

29 Dito isso, uma nova tradução existe em português. Escritos, trad. Vera Ribeiro, Rio de Janeiro, Editora Zahar, 1998.

30 In L’Âne, op. cit.


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- Auteur : Inês Oseki-Dépré -Universidade de Provence. Tradutora de: Jacques Lacan, Escritos, São Paulo, Editora Perspectiva, 1978.
- Titre : A tradução brasileira dos Escritos de Jacques Lacan: de uma libra de carne
- Date de publication : 12-09-2011
- Publication : Revue Silène. Centre de recherches en littérature et poétique comparées de Paris Ouest-Nanterre-La Défense
- Adresse originale (URL) : http://www.revue-silene.comf/index.php?sp=comm&comm_id=72
- ISSN 2105-2816